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ARTIGOS DE OPINIÃO
Uma guerra global, um jogo de muitos bilhões. No mundo dos "tablets" e "smartphones", quem tem muita patente é rei. Pelo menos é o que pensam as grandes corporações globais, que investiram cerca de US$ 20 bilhões na compra de patentes nos últimos cinco anos, como forma de enfrentar a feroz competição nesse bilionário setor da economia. Não é à toa que ações judiciais e acusações de cópia e apropriação indevida de parte a parte se multiplicam e se desenvolvem hoje em pelo menos dez países, e aumentam a uma taxa anual de 20%. Nem tudo é novo nessa disputa. Mas, pelo universo expandido, musculatura dos atores e volumes envolvidos, podemos dizer que estamos diante da primeira guerra global por patentes. Guerra que tem muito de jogo de posição, já que os gigantes que se arranham hoje desenvolvem tecnologias e padrões em conjunto e, quase sempre, se acertam na defesa de seus produtos, antes ou depois de lançados no mercado. Mesmo assim, há surpresas, pois as estratégias corporativas comandam a competição, visam inimigos secretos e, até mesmo, condicionam as noções de "fair play". Nem sempre, porém, as sociedades e os cidadãos conseguem identificar as razões que explicam as grandes disputas. Primeiro, é bom registrar que a escalada de ações judiciais inunda as cortes dos Estados Unidos, Europa e Ásia. Para além da geografia, é possível reconhecer que poucas empresas escapam dessa movimentação. Isso porque os atuais processos envolvem também setores nem sempre diretamente ligados à comunicação, ou ainda corporações que utilizam as patentes defensivamente, ou apenas como negócio e não para a produção de bens (acionando empresas por não respeitarem patentes de sua propriedade). A malha de interesses envolvidos, portanto, é gigantesca. Patentes...Patentes...Patentes... Créditos: Valor Econômico
Segundo, é preciso explicitar que celulares e "tablets" são de engenharia complexa. São pequenas maravilhas embebidas de software e capazes de operar como verdadeiros centros de entretenimento. Isso significa que a competição pelas patentes está longe de se dar em torno de trivialidades, mas envolve plataformas inteiras de tecnologia e robustos sistemas operacionais. Esses aparelhos são portadores de tecnologias de encruzilhada, com origem em indústrias distintas, em geral patenteadas. Esses pequenos "cérebros eletrônicos" pedem, por isso mesmo, o acompanhamento de uma legião de protetores invisíveis, imersos em um precioso mercado, capaz de levar o mundo dos advogados ao delírio. Terceiro, as empresas que não contam com um poderoso portfólio de patentes são praticamente empurradas para fora ou não conseguem entrar nesse jogo. Quem tem ficha participa. Quem não tem, assiste. E o nome da ficha atende por "patente". Quarto, para todo o mundo e, principalmente, para países como o Brasil, as atenções se voltam para os impactos que disputas dessa natureza geram nas sociedades, no universo da tecnologia, nas pequenas e médias empresas e, principalmente, junto aos usuários. Essas indagações não são novas, ainda que a velocidade, os recursos envolvidos e o colorido atual passem essa impressão. O dilema que interessa ao mundo da tecnologia é saber se a interpretação dos tribunais sobre o atual sistema patentário conseguirá equacionar essa disputa ou se contribuirá para a redução das escolhas das pessoas e terminará com uma elevação indiscriminada de preços. Em outras palavras, se as patentes serão tratadas, tomadas ou informadas mais como um obstáculo do que um estímulo à inovação. Pelos números da disputa, vê-se claramente que, nesse mundo, o espaço é muito estreito para os pequenos. Grandes empresas têm enorme vantagem sobre "startups" ou inventores sem porte, pois não possuem capital nem advogados para escrever, depositar e manter suas patentes. Sem incentivos, em vez de disputarem no terreno da inovação, correm o risco de se enredarem na malha dos tribunais ou nos meandros da burocracia. Mas não se trata apenas de uma briga entre vários Golias que afeta muitos Davis. A decisão das cortes em favor de uma ou outra empresa pode afetar o desenvolvimento de inovações mundo afora, principalmente nos países emergentes. A consagração de um "legítimo inovador", proprietário de tecnologias e produtos reconhecidos judicialmente como vencedores por serem originais, termina por redesenhar o campo da disputa. E, dessa forma, acaba por definir os rumos que as tecnologias podem legalmente trilhar. Esse horizonte, em linguagem de mercado, pode durar anos e anos. Aqui, estamos no coração das ações judiciais em curso. A vantagem de uma corporação significa não apenas uma recompensa via penalidades, mas controle de uma infraestrutura capaz de atrair milhares de outras empresas ou indivíduos para o codesenvolvimento de aplicativos ou mesmo de tecnologias associadas. É o que se chama de ecossistema de inovação, cujo predomínio pode garantir o reinado de uma corporação, da mesma forma que vimos com os sistemas de navegação dos PCs e o quase monopólio resultante. O jogo atual dos "tablets" e "smartphones" pode durar muito tempo. Esperamos apenas que essas disputas não ocorram em torno de "retângulos com pontas arredondadas", o "estilo do zoom", ou mesmo o "efeito gestual quando se vira uma página de um celular". Diga-se de passagem, nasceram como brincadeiras em outras eras e apenas uma ampliação desmesurada dos critérios de inovação podem sugerir seu enquadramento como "novidades" patenteáveis. No Brasil, felizmente, critérios rigorosos do INPI impedem que frugalidades desse tipo sejam travestidas de novidades, como vimos em algumas decisões da corte da Califórnia. É preciso distinguir entre a necessidade de se fortalecer o sistema de patentes do apoio ao prolongamento artificial do que se chama "monopólio transitório" conferido a uma empresa ou indivíduo realmente inovador. Para países como o nosso, o temor da proliferação desse tipo de disputa é que as empresas aceitem muito mais como normal a competição no extramercado judicial do que no campo próprio da inovação. Os perdedores seriam as empresas emergentes e, fundamentalmente, os usuários. Escolhas que os países fazem sobre o que é ou não patenteável, assim como sobre as formas de licenciamento, podem alterar esse quadro, ao abrir ou fechar portas. Por isso, a responsabilidade do gestor público, assim como dos tribunais, é fundamental. Sabe-se há muito que criação e recriação fazem parte do DNA da inovação. A arte combinatória e as melhorias incrementais a partir de tecnologias existentes sempre foram imprescindíveis para dar dinamismo às economias inovadoras, inclusive nos Estados Unidos, sem desrespeitar o sistema de propriedade intelectual. Ao gerar incertezas sobre esses processos, a atual competição global arrisca inibir a criação do novo. Com isso, encolhe o universo de escolhas dos usuários e interpõe mais obstáculos à diminuição da distância que separa países como o nosso da produção de tecnologias mais avançadas. Glauco Arbix é professor da Universidade de São Paulo e Presidente da FINEP. Nota do Managing Editor - Esta matéria foi veiculada primeiramente no jornal Valor Econômico, em 11 de outubro de 2012. |
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