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ARTIGOS DE OPINIÃO

A obra intangível

Quanto vale um pequeno texto? Uma consulta médica com duração de 20 minutos? Uma palestra? Um aperto veloz em alguns parafusos?

Uma das mais saborosas histórias - provavelmente lendária - sobre o advento da sabedoria para aqueles que conseguem maturar, sem sofreguidão, a experiência de vida é a que se conta a respeito do notável pintor francês Auguste Renoir. No ano em que se iniciava o século 20, ele, já sexagenário e bastante afamado pela vitalidade que deu ao impressionismo, foi procurado por um jovem admirador interessado em aprender as artes do desenho. Porém, alegando um tempo escasso para tal empreitada, o apressado discípulo desejava saber quanto tempo duraria o aprendizado, pois ficara animado ao ver que o grande mestre fora capaz de fazer uma bela pintura com delgadas pinceladas, mas com uma rapidez assombrosa.

É nesse instante que a resposta de alguém que é um sábio consistente ultrapassa o senso comum e o óbvio, gerando o novo (em vez de produzir mera novidade, como muitos hoje súbita e debilmente famosos). Diz Renoir: "Fiz este desenho em cinco minutos, mas demorei sessenta anos para consegui-lo".

Estupendo! E faz emergir uma grande questão: como avaliar em um trabalho ou em uma obra todo o intangível percurso e a experiência anterior que foram necessários para que o resultado tangível possa ser recompensado, remunerado, apreciado? Quanto vale o trabalho de um artesão, uma cozinheira, um mecânico, um médico, uma professora, um palestrante, uma cientista, uma jornalista, um músico, etc.? Quanto vale um pequeno texto? Uma consulta médica com duração de 20 minutos? Uma palestra? Uma aula? Um aperto veloz em alguns parafusos? Uma rápida massagem? Um cavalinho artesanal feito de barro? Um cesto indígena? Uma camisa bem passada? Uma consulta jurídica pelo telefone?

O critério com o qual costumamos atribuir valor ao objeto ou serviço que será adquirido ou apreciado está apoiado especialmente na observação do tempo consumido para realizá-lo ou na suposta dificuldade momentânea de elaboração; no entanto, para escapar de uma postura superficial, é necessário lançar mão de um outro critério: a percepção do peso da raridade, do insólito, do invulgar ou, tal como se fala cada vez mais, da expertise e perícia de alguém em alguma atividade.

Há uma antiga historinha - por muitos difundida - que serve para exemplificar o valor de uma intensa habilidade e o quanto nem sempre ela é reconhecida.

Conta-se que em uma imensa fábrica nos EUA, funcionando o tempo todo por 24 horas ininterruptas, plena de mecanismos sofisticados, máquinas avançadas e equipamentos hidráulicos de última geração, ocorreu uma pane desconhecida. De pronto, sem qualquer aviso, todo o sistema ficou paralisado. Ora, cada minuto era precioso, tendo em vista a perda acelerada de dólares que a parada causava. A engenharia de manutenção e o suporte técnico foram imediatamente chamados, os especialistas examinaram todas a estruturas possíveis, os relatórios informatizados e as planilhas de operação foram vasculhados e nada. O defeito não era localizado.

Passa-se um dia, dois e, no terceiro, com a direção já desesperada, prefere-se convocar dois técnicos do Japão, que, um dia após a chegada e a inspeção, já haviam desistido. No sexto dia, tarde da noite, reúne-se a desanimada diretoria, à beira do colapso criativo e próxima de buscar soluções esotéricas para sanar o imenso prejuízo acumulado. Num determinado momento, um dos diretores diz: "Lembrei-me de uma coisa! Há um velho encanador que trabalha há mais de 50 anos nesta cidade. Quem sabe, como recurso extremo, ele nos ajude". Sem alternativa, chamam o antigo profissional que, com sua maleta de ferro já desgastada, caminha silencioso por toda a fábrica e, de repente, perto da área central, pára, abaixa-se, coloca o ouvido no piso e dá um leve sorriso. Tira, então, da maleta, um martelo de borracha e, com ele, dá uma pancada no chão. Tudo volta a funcionar. Júbilo, alegrias, vivas.

O gerente financeiro, depois de abraçar efusivamente o encanador, pergunta pelo custo do serviço. Ele responde que são mil dólares. O gerente, atordoado, retruca: "Mil dólares por uma marteladinha? Não dá, não vão aceitar. Faça, por favor, uma nota fiscal detalhando todo o seu trabalho aqui". O velhinho não se incomoda: preenche o documento e entrega ao gerente, que lê a discriminação: "a) dar a marteladinha, 1 dólar; b) saber onde dar a marteladinha, 999 dólares".

Nota do Managing Editor: O presente texto, de autoria de Mário Sérgio Cortella, foi primeiramente publicado na Folha de São Paulo, em 06 de março de 2003, no caderno Folha Equilíbrio, p. 12.

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