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ARTIGOS DE OPINIÃO

O Jornalismo Científico e o compromisso com as fontes.

A experiência ensina que toda fonte tem os seus compromissos, sejam eles comerciais, políticos, ideológicos ou mesmo pessoais. O bom jornalista parte sempre desse pressuposto básico, quando se defronta com uma fonte, valendo-se de alguns recursos ou estratégias para qualificar a informação que ela lhe oferece. Em primeiro lugar, identifica a fonte previamente, buscando avaliar sua trajetória, suas relações, seus interesses, suas posições anteriores, etc. Em segundo lugar, coteja-a com outras fontes para evitar o risco de prender-se a uma única voz, a uma única versão. Finalmente, contextualiza as informações, tendo em vista o tema ou a pauta específica de que está tratando.

Ao que parece, esta lição de vida não tem sido seguida à risca no Jornalismo Científico. Algumas justificativas para esta displicência, equívoco ou omissão podem ser apontadas, como a falta de capacitação do profissional que cobre ciência e a tecnologia (vamos admitir que a situação tem melhorado bastante nos últimos anos), a relação desequilibrada entre o repórter e a fonte (afinal de contas, o especialista é o outro!) e a aceleração do processo de produção jornalística, que atropela a coleta e a "checagem" das informações.

Podemos apontar, no entanto, um outro motivo, que nos parece fundamental e que está subjacente à prática do jornalismo científico: a aparente neutralidade da fonte.

Isso mesmo: o jornalista, ao se deparar com um pesquisador, um cientista, ou um técnico, costuma pressupor que, neste ambiente especializado, as falas e as intenções são isentas, ou seja, não há porque manter-se em vigília. A postura tem a ver com a própria imagem da ciência, como uma atividade humana nobre, comprometida com o progresso e o bem-estar da coletividade. O especialista, como porta-voz da ciência e da tecnologia, estaria, portanto, para quem acredita nisso, distante do processo de contaminação que afeta as fontes jornalísticas em geral.

Como diria o poeta, ledo engano. A ciência e a tecnologia, no mundo moderno, constituem-se em mercadorias, produzidas e apropriadas pelos grandes interesses, e as fontes, sejam elas pesquisadores, cientistas ou técnicos, podem estar absolutamente contaminadas por vínculos de toda ordem. Seria ingenuidade imaginar que, ao se debater temas como transgênicos, opção nuclear, licenciamento ambiental, projeto espacial brasileiro, reforma agrária ou mesmo a legitimidade da teoria da evolução, estivéssemos sempre diante de fontes absolutamente isentas.

Os cientistas, os pesquisadores defendem posições, submetem-se a patrocínios, têm suas idiossincrasias, mantêm relações de afinidade com partidos políticos, correntes ideológicas, etc. Se este cientista, técnico ou pesquisador trabalha para uma empresa (você não desconfiaria de um engenheiro da Monsanto ou do pesquisador sênior da Philip Morris?) ou para um Governo (você bota fé nos cientistas que estão comprometidos com os "falcões" americanos?), os compromissos estão ainda mais evidentes.

Muitos jornalistas ignoram que esta relação promíscua entre ciência e poder, ciência e capital é cada vez maior. Há quem afirme que está cada vez mais difícil encontrar um pesquisador de prestígio que seja independente, até porque a ciência está cada vez mais burocratizada, complexa, monetarizada e aquele cientista isolado, que pesquisa com recursos próprios, só existe mesmo em países pobres ou emergentes (muitos mestres e doutores brasileiros que estão envolvidos com seus projetos, tendo em vista a obtenção de títulos acadêmicos ). Inúmeras publicações científicas de prestígio, em todo mundo, estão atentas para esta relação promíscua e têm exigido, cada vez mais, a declaração dos vínculos funcionais ou comerciais dos pesquisadores que a elas encaminham seus artigos.

Logo, não há porque postar-se diante de uma fonte em ciência sem esta desconfiança (ou cuidado) que deveria ser comum aos jornalistas em qualquer área.

Toda fonte é, em princípio, uma fonte comprometida e, portanto, mesmo (talvez fosse correto dizer, hoje em dia, sobretudo) na cobertura de ciência e tecnologia, é necessário estar sempre de olhos e ouvidos bem abertos.

Ainda que se possa admitir, em tese, que a ciência (não a tecnologia, que se compromete com a sua própria aplicação) seja neutra (há estudos que mostram que não é bem assim e já se fala em uma ciência feminista, em uma ciência dos países em desenvolvimento, o que não é mais do que garantir que a ciência tem um compromisso com a geografia e com a história!), a fonte em ciência e tecnologia, certamente, não é isenta.

É preciso, pois, enxergar sempre além da notícia e da fonte, buscando fugir da armadilha de tornar-se refém de um especialista, que tem outros compromissos além da ciência e da tecnologia. Embora possa não ser fácil identificar os vínculos das fontes, há que se imaginar que eles existem e que é socialmente, politicamente relevante manter a vigília.

A leitura regular da cobertura de ciência e tecnologia nos remete a informações controversas, a instâncias que extrapolam o processo de produção científica, como se pôde observar nos recentes manifestos de cientistas franceses e americanos contra a intervenção dos seus governos na condução e divulgação de seus projetos de pesquisa. Afinal de contas, necessariamente não são os cientistas e pesquisadores que definem as prioridades de investimento em C&T, resultado de lobbies nos congressos e de acertos nos bastidores oficiais.

Imaginar-se que a competência técnica ou científica prevaleça, em ambientes onde concorrem interesses comerciais e políticos poderosos, é acreditar em duendes. A escolha do padrão digital da TV brasileira, a compra dos novos caças da FAB, os parceiros em projetos tecnológicos são definidos por um conjunto amplo de fatores e, infelizmente, muitas vezes a excelência das soluções (sob o ponto de vista da ciência e da tecnologia) e mesmo o interesse público não fazem parte do processo de decisão.

A relação com as fontes em ciência e tecnologia, apesar das singularidades de que elas se revestem, deve pautar-se pelo mesmo cuidado que todos os jornalistas devem ter quando diante de políticos ou executivos de empresas. Na prática, do ponto de vista dos compromissos e interesses, pode-se afirmar que as diferenças entre pesquisadores, parlamentares ou empresários não são tão significativas.

Há, evidentemente, exceções, e o bom jornalista só conseguirá identificá-las, se estiver atento e disposto a isso. Não há fontes neutras nos laboratórios, nas academias e muito menos nos departamentos de P&D das grandes corporações. Por isso, o jornalismo científico também não será, jamais, objetivo, porque se constitui (e deve ser assim) em um discurso construído a partir destas mediações e filtros. Espera-se que o jornalista científico não assuma a posição de porta-voz das fontes da área e que saiba, consciente da convergência de interesses extracientíficos na produção e divulgação de C&T, escolher o melhor caminho. O jornalismo científico também exige militância.

Nota do Managing Editor: Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP e do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Este artigo foi primeiramente veiculado, a partir de 07/05/2004, no site da Agência Brasil (http://www.radiobras.gov.br).

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