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CULTURA DA QUÍMICA
Transmutação dos Metais: um velho tema revisitado Resumo Este artigo enfoca a "transmutação dos metais", valendo-se de escritos de J. Marcus de Vèze, publicados em 1902. Desta obra, procurou-se destacar vários aspectos: idéias do Autor e seus contemporâneos sobre a transmutação dos metais, a evolução da Química, bem como informações acerca de supostas realizações de experiências de interconversão de prata em ouro, nos Estados Unidos. Finalmente, é apresentada uma descrição de dois procedimentos que, segundo De Vèze, permitiriam (??) a obtenção do chamado "ouro alquímico". Introdução A questão da Transmutação dos Metais tem recebido as mais variadas considerações, seja na direção de simples aceitação ou refutação dos procedimentos da Alquimia, seja na recolocação do problema dentro do contexto dos procedimentos científicos e tecnológicos disponíveis atualmente. Sobre estes diferentes aspectos existe grande quantidade de material bibliográfico, sendo a maioria não disponível em nosso país. Nossas várias visitas à biblioteca do Arsenal, em Paris, possibilitaram-nos contacto com uma variedade bastante significativa de títulos que tratavam do assunto, com ênfase principalmente no período onde os procedimentos da Alquimia eram extensivamente praticados. Naquela oportunidade, deparamo-nos com um opúsculo denominado La Transmutation des Métaux et L'Or Alchimique - L'Argentaurum de J. Marcus de Vèze, editado em 1902 e reeditado em 19772. Dentre os vários aspectos abordados, dois, efetivamente, chamaram nossa atenção, por sobressaírem-se às demais obras. O primeiro, sua data de publicação: 1902 - observe-se que já em pleno século XX e, o segundo, o sub-título: "Divers procédés des fabrication avec lettres et documents à l'appui"3. É importante situar um pouco mais o início do século XX, quando este livro foi publicado, para que se tenha uma noção temporal dos acontecimentos. Este "début" de século ficou marcado por importantes descobertas e novas concepções científicas. Dentre elas, podemos citar a determinação da carga do elétron, por Millikan; a presença do núcleo nos átomos, por Rutherford; o conceito de quantum, por Planck; o efeito fotoelétrico, por Einstein, entre outros. A própria tabela periódica de Mendelev apresentava, já em 1869, idéias avançadas sobre as propriedades periódicas dos elementos. É inacreditável que manipulações tidas como "transmutação de metais" - com base em procedimentos da Alquimia - tenham resistido e, de algum modo, coexistido até esta época. Mais inacreditável ainda, é que o resultado de algumas destas operações chegassem a ter importância comercial. Nosso intuito, nesta compilação, é unicamente revelar alguns destes fatos tratados no livro de De Vèze. Escusado dizer que para um químico de nossos dias, um texto como este reveste-se de uma aura de certo encantamento e, percorrê-lo, transforma-se em algo bastante especial, instigante e, porque não dizer: surpreendente! É, pois, dentro desta perspectiva, que procuraremos levantar alguns aspectos da obra, naquilo que - salvo melhor juízo - possa trazer de informações àqueles que se interessam pelas estórias e pela História da Química. Perspectiva e relatos de Vèze J. M. de Vèze introduz a obra fazendo umas tantas observações ao leitor. Ressalta o fato de que há séculos, homens vêm se perguntando sobre a possibilidade de se fazer ouro por transmutação; se, por exemplo, é possível transformar o cobre em prata e esta em ouro. Indagam-se, igualmente, sobre a Pedra Filosofal, o Ouro Potável ou mesmo o Elixir da Vida: teria existido? Como objetivo de sua obra o Autor coloca o estudo destas questões e pretende demonstrar que a Pedra Filosofal ou o Pó de Projeção, o Ouro Potável ou o Elixir da Vida, ou mesmo a Transmutação existem já há milhares e milhares de anos, fazendo referência aos egípcios como um dos povos da antiguidade que já dominavam o modo de fazer o ouro alquímico. Figura 1 - Fac-Símile do livro de De Vèze .(a) folha de rosto. (b) folha de registro. A definição dada ao metal é, no mínimo surpreendente. De Vèze, o compara a "um verdadeiro animal" que, tendo "vida própria", auxilia na sua própria transformação e, a seguir, em sua transmutação. Acrescenta, ainda, que aquilo que a Natureza levou séculos e séculos para realizar, o homem pode conseguir em tempo bem menor, em poucos meses, dias até, graças a utilização da Eletricidade, mais especificamente ao uso de dínamos (p.l). Destas e outras considerações depreende-se ter havido pelo menos duas linhas de pensamento principais, no que dizia respeito à evolução dos metais. A primeira, que admitia que esta evolução cessava quando fosse alcançado o estado de prata ou mesmo de ouro. Atingir o estado de metal nobre, significava atingir a perpetuidade. A segunda, admitia uma evolução contínua, isto é: atingida a perfeição, haveria um retorno a um "estado imperfeito", de modo que os processos de transformação molecular continuariam incessantemente através dos séculos. O Autor atribui a Rudolphe Glauber4, a segunda maneira de enfocar o problema. Entretanto, acrescenta que Paracelso5 foi um pouco além ao afirmar que, sob a influência dos astros e do sol, os metais vís (pobres) não só se transformariam em ouro ou prata, como também poderiam se transformar em pedras, e que os minerais se desenvolveriam à maneira das plantas, através de uma espécie de semente, os mais tarde chamados "fermentos de Tiffereau" (p.2). É através das palavras de Girtanner de Goetingue6 que o Autor coloca a primeira questão sobre o desenvolvimento da transmutação: "La transmutation des métaux sera généralement connue au XIXe siècle, car tous les Chimistes sauront faire de l'or". Assim, admite ele a transmutação como fato inquestionável, apoiado em provas que arrola, e acredita que todos os homens de ciência que "estudarem seriamente e de boa fé" esta questão, não terão dúvidas quanto aos resultados que passará a descrever (p.4). A visão do estudo da Química no início do século XX merece ser destacada. Segundo De Vèze, é surpreendente que "espíritos superficiais" neguem a transmutação, a despeito dos meios de investigação postos à disposição e do que se sabia de Química, se bem que, acrescenta: "esta ciência [a Química ]seja ainda relativamente pouco avançada". A leitura aqui denota a Química como uma ciência nascente diferente, portanto, da Alquimia. Outro aspecto digno de realce é que, apesar de considerar a Química como ainda incipiente para aqueles dias, De Vèze aponta para um grande futuro, na qual a Química proclamaria a Unidade da Matéria. Segundo ele, nos novos dias, não só a transmutação dos metais se processaria, mas "a transformação de tudo". Cita, como exemplo, a obtenção de alimentos pela utilização de toda a sorte de substâncias. A abrangência desta colocação certamente permitiu ao Autor tecer considerações a respeito das modificações que poderiam ocorrer na situação econômica da humanidade e, ainda, sobre as transformações radicais que poderiam ter lugar na organização social se, por exemplo, o ouro fosse um metal tão comum quanto o ferro (p.6). Dentro desta perspectiva de Unidade da Matéria, o Autor remete-nos a uma descoberta americana: o Ouro alquímico denominado Argentaurum. Tal descoberta coloca em cena o químico americano Dr. Stephen H. Emmens, de Nova York, seu inventor. Várias considerações são feitas sobre a "efervescência" que a referida descoberta causou na época, e, certamente, também sobre a negativa da química oficial em aceitar esta Unidade, mesmo que a nível de hipótese. Segundo De Vèze o "grande químico Berthelot, não obstante ser um cientista dos mais oficiais, não estava muito longe de admitir tal Unidade". A maneira como o Autor formulou as idéias sobre a Unidade da Matéria nos pareceu sobremodo interessante, razão pela qual traduzimos aqui, dentro de toda fidelidade possível e requerida para o caso, os trechos mais significativos:
Godfroy prossegue fazendo o seguinte comentário:
e finaliza:
Valeria a pena apresentar um pouco mais de detalhes sobre o Argentaurum. De acordo com o Autor, que teve recurso a material publicado pela Revista Cosmos, que registrara a descoberta do Dr. Emmens, a produção se deu em 6 de abril de 1897, pela "interconversão" da prata e do ouro. O primeiro lingote de prata transformada em ouro, obtido no laboratório do Sindicato do Argentaurum, teria sido vendido ao National Bureau of Standards (NBS). Na Tabela 1, a seguir, são fornecidos os dados do NBS para o estabelecimento do preço do lingote para o governo americano. _________________________________________________
Com relação ao Dr. Emmens, acrescenta o Autor tratar-se de pesquisador conhecido no Novo-Mundo, sendo membro de várias sociedades científicas, entre elas: American Chemical Society, American Institute of Mining Engineers, lnternational Society of Electricians, bem como inventor do Emmensite - explosivo utilizado pelo governo americano na proteção da região costeira - e de um método de tratamento de zinco sulfuroso. Publicou também o Argentaurum Papers onde expõe suas idéias sobre a composição dos Corpos. Os procedimentos que utilizou eram de propriedade de uma sociedade financeira constituída de para auferir os lucros de sua descoberta, daí não terem sido divulgados. O acesso que o Autor teve à correspondência particular do Dr. Emmens permitiu a obtenção de mais informações sobre a orientação do trabalho do mesmo. Dentre estas, particularmente representativa foi a resposta enviada a Sir William Crookes12, membro da Royal Society de Londres, em 21 de março de 1897. Tal resposta constituía-se de onze itens, dos quais apresentamos a seguir alguns excertos:
"...quando a nova máquina de força estiver funcionando, poderemos produzir 50.000 onças por mês" (p. 17). "não poderia deixar de ser menos explícito ao escrever a um homem cuja autoridade científica se impõe a todo mundo. Atenciosamente, ..." (p. 17). O Autor deixa claro, e a leitura da carta permite depreender que, se o químico americano não realizou a transmutação da prata em ouro, pelo menos deve ter "inventado" um procedimento que dá à prata o valor de ouro, uma vez que o tesouro dos Estados Unidos comprou os lingotes fabricados a preço de ouro! São relatadas, também, as experiências feitas por M. Tiffereau13, realizadas em 1847, portanto antes das do Dr. Emmens, nas quais a transmutação é obtida por simples procedimentos químicos. "Na natureza todos os caminhos levam à Roma", comentava De Vèze. Apresentamos abaixo o procedimento de M. Tiffereau:
Tiffereau chama atenção para o fato de ter realizado sua primeira experiência em Guadalajara e a segunda em Colima, ambas cidades mexicanas, onde os fenômenos se produziram igualmente. Realizou ainda outra experiência em Guadalajara onde, segundo ele, "toda a quantidade de liga que utilizou na experiência se transformou inteiramente em ouro puro". Experiências iguais jamais puderam ser realizadas na França devido às condições climáticas. No México, sob a ação do sol escaldante, e também, talvez, sob a influencia de fermentos particulares presentes na atmosfera da região, rica em minas de ouro, estas experiências, segundo o Autor, tiveram êxito. De Vèze chega a acreditar que as afirmações do Dr. Emmens dão um "cunho sério àquelas de M. Tiffereau, parecendo difícil admitir que o grande químico americano tomasse parte de um negócio escuso, não tendo outro objetivo senão o de lançar ações e subtrair dinheiro de um público crédulo, vendendo ao Tesouro Americano ligas fabricadas com prata e ouro pré-existentes". Acredita ainda que os detratores fizeram muito estardalhaço sobre o Argentaurum, visando tão somente uma especulação na Bolsa sobre as minas de ouro do Transvaal14. A Revista Hyperchimie, quando de seu aparecimento, apresentava como proposta colocar-se acima das rotinas da ciência catalogada e oficial, bem como propagar a Alquimia. Em seu número 10, de outubro de 1897, na coluna 8, apresenta sob o título: "Recette pour l'or artificiel" um outro procedimento de preparação que abaixo transcrevemos15:
Figura 2(a) - A criança no ovo simboliza a coloração vermelha que anuncia o fim da Grande Obra. Figura 2(b) - Conjunção, união ou casamento do Rei e da Rainha, Enxofre e Mercúrio, Ouro e Prata. O sol e a lua relacionam-se ao Rei e á Rainha. Os aparelhos de destilação e a chuva ao fundo indicam que, durante a operação de conjunção, ocorrem fenômenos de emissão de vapor e de condensação. O padre, símbolo da união, é o sal. Fonte: "Theories & Symbols des Alchimistes - Le grande Oeuvre, Editora Chacornac, Paris (1978). Esta edição é um fac-simile da edição original de 1891. Para De Vèze, a transmutação nunca foi objeto de dúvida. Admite ele, inclusive, que não existiria apenas um procedimento para se processar esta transformação. O que lhe chama atenção é o fato de que "os procedimentos [para a obtenção do ouro alquímico] do século XVI tivessem ficado por tanto tempo perdidos". O Autor, em seu livro, faz referência a contatos estabelecidos entre M. Tiffereau e o Dr. Emmens, nos quais o último comunica que iria ao México a fim de repetir sua experiência, sendo que resultados preliminares o autorizavam crer que em poucas semanas enviaria um "espécimen" do autêntico ouro Tiffereau. Outro fato marcante citado diz respeito à realização da experiência de transformação para os membros da Academia de Ciências da França. Quem realizou tal experiência teria sido o eminente químico M. Henry Moissan, servindo-se de cadinhos oficiais e dínamos potentes. O método, é verdade, comenta De Vèze, difere daqueles dos Mestres da Grande Arte. Vários alquimistas realizaram a transmutação, dentre eles são citados: Louis de Neuss. Ed. Kelley, Nicolas Flamel, Imperatriz Barbe (Segunda esposa do Imperador Sigismundo da Alemanha), Van Helmont, Helvétius, Bérigarde de Pise e Cyliani. Resumindo suas conclusões, acredita De Vèze ter reunido provas cabais que demonstraram que a "transmutação não é um mito, uma utopia, mas, sim, uma operação científica, uma realidade tangível", como já disse no início da obra. Nesta compilação, procuramos levantar os aspectos que nos pareceram mais interessantes e importantes sobre o livro De Vèze. Não tivemos, fique claro, a pretensão de realizar qualquer análise histórica ou mesmo filosófica dos diferentes conceitos emitidos. Objetivamos, isto sim, compartilhar com os leitores o fascínio desta informações, esperando que as mesmas possam auxiliar no despertar do interesse por estes outros aspectos de nossa, ainda, tão pouco conhecida e, por isso mesmo, mal-amada Química. Agradecimentos Agradecemos a Maria lsolete Alves pela cuidadosa revisão do texto e aos assessores pelas sugestões apresentadas. Referências e Notas
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