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CULTURA DA QUÍMICA
Tio Tungstênio: Memórias de Uma Infância Química Como Humphry Davy, o inventor da lâmpada de segurança e descobridor do potássio, no princípio do século 19, Oliver Sacks viveu uma infância de químico-poeta na Londres dos anos 30/40. De uma família numerosa fiel aos rituais judaicos e com uma curiosidade intelectual espantosa para um menino, este neurologista radicado em Nova York e escritor brilhante (o seu best-seller Tempo de despertar foi filmado por Hollywood) cresceu entre experiências com metais, consultas médicas no ambiente caseiro e muita cultura química, inebriado por uma visão romântica da ciência - salpicada de traumas domésticos pelos atendimentos de emergência de seus pais, médicos, e pelo manuseio de compêndios de medicina assustadores para sua percepção de criança. No laboratório de Tio Dave, que fabricava lâmpadas com filamentos de tungstênio, o menino Oliver conheceu um mundo mágico e impactante, assistindo à vida mineral ser alterada em cadinhos de platina, nos quais os metais revelavam ter personalidade própria como seres vivos. Se o mercúrio com sua ação líquida tinha o poder de destruir o brilho do alumínio em poucos segundos, dando ao aprendiz de química a sensação de tratar-se de um ''perverso destruidor de metais'', com o tungstênio - o mais denso entre os metais, e o favorito de Tio Dave - a coisa era diferente: ''Se eu puser esta barrinha de tungstênio no mercúrio, ela não será afetada... Se eu a guardar por um milhão de anos, continuará tão brilhante quanto agora". O que levou o menino a deduzir, em meio à instabilidade de uma Europa afetada pela guerra, que o tungstênio, pelo menos, era estável em um mundo precário. Seu Tio Tungstênio ensinou-lhe a ver a ciência como um empreendimento humano - mais do que intelectual e tecnológico - através do qual se podia tocar o sagrado. As suas memórias atravessam o período em que, com apenas 6 anos, foi afastado da família, quando sua escola londrina foi fechada pela ameaça de bombardeios nazistas. Em um internato do interior, viveu a sensação de ter sido abandonado e sofreu os horrores da vara e das humilhações por parte de um diretor enlouquecido que descarregava no pequeno judeu indefeso sua fúria anti-semita. Ao de retratar o cotidiano de uma família com várias gerações de cientistas - um ancestral de sua mãe, um certo Lazar Weiskopf, que viveu no século 17, era rabino com uma queda pela alquimia -, Tio Tungstênio mostra-se como um diário íntimo com narrativa confessional requintada. Mas o livro propõe-se também a ser um roteiro de cultura química (e, por que não dizer, um itinerário de cultura científica em geral?), levando-nos a conhecer a obra e as particularidades de químicos e inventores célebres, como Lavoisier, Edison, Scheele, Marie Curie, Dalton, Moseley, Boyle e o russo Mendeleiev, cuja Tabela Periódica dos Elementos, de 1869, ocupa duas páginas do livro com a classificação detalhada de 103 elementos (do hidrogênio ao tungstênio e ao plutônio), introduzindo-nos, sem aviso, em uma aula de química tradicional. A descoberta da vida e da obra de Robert Boyle impactou, particularmente, o pequeno Oliver. Vinte anos mais velho que Newton, Boyle emergiu numa época em que a prática da alquimia ainda predominava. Boyle acreditava que era possível criar ouro - e que conseguira criá-lo -, chegando a ser aconselhado por Newton a manter silêncio sobre isso. Movido por uma ''santa curiosidade'', na definição de Einstein, foi quem elevou a química à categoria de ciência, em meados do século 17. A afirmativa de Boyle de que todos os prodígios da natureza proclamavam a glória de Deus, o que o estimulou a investigar uma gama enorme de fenômenos, lembrava a paixão com que Tio Dave manuseava as pepitas raras que levava a experimentos em seu laboratório londrino, conduzindo o fascinado aprendiz a ''ereções mentais'' que competiam, na época, com as ereções físicas que afloravam. Aos 14 anos, ao ser escalado por sua mãe obstetra para uma sessão privada prática profissional, pois jamais deixou de acompanhar o percurso das descobertas, fixando seu amor, no entanto, na química poética dos ''fedores e explosões'' que fazia com que um mito como Humphry Davy saísse dançando de alegria pelo laboratório ao concluir com sucesso seus experimentos que isolaram potássio e sódio metálicos por meio de uma corrente elétrica. Frustrado com o advento da mecânica quântica, que libertava a química da necessidade do experimento, projetando-a como ciência limpa para os tempos do computador, Oliver acabou se dobrando às pressões da família, e foi estudar medicina nos Estados Unidos. Mais recentemente condoeu-se ao ler que o seu metal de estimação, o tungstênio, estava sendo utilizado pela indústria bélica para revestimento de foguetes e de mísseis. Mas a veia poética do professor de neurologia do Albert Einstein College rompeu os muros acadêmicos e fez dele um festejado escritor: passou a fazer química com as palavras e de sua literatura uma química originalíssima, como mostram seus livros anteriores, Um antropólogo em Marte e O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (Companhia das Letras), e este surpreendente Tio Tungstênio. Trata-se de um livro em que a aventura literária envolvendo metais, plantas, números, invenções, pessoas, infância, família nos convida a entrar em contato, sem defesas, com nossas próprias memórias ancestrais tão censuradas, pelas sentinelas da razão que tentam nos conduzir, mais e mais, a uma mera existência funcional, conspirando contra os sentimentos latentes no núcleo do nosso ser. Oliver Sacks, como um alquimista contemporâneo, demonstra com maestria como na delicadeza das reminiscências podem se encontrar partículas da pedra filosofal que ajudam a manter acesa a chama da vida. Nota do Managing Editor: Joel Macedo é jornalista e psicólogo. Esta Resenha foi primeiramente publicada pelo Jornal do Brasil, em 09 de novembro de 2002. Veja mais sobre a Cultura da Química. |
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