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CULTURA DA QUÍMICA
À sombra de Pasteur A análise dos cadernos secretos de anotações do cientista francês, publicada agora no Brasil em forma de livro, aponta a mitificação em torno da personalidade de um dos grandes nomes da civilização ocidental. Os criteriosos historiadores que decidirem enumerar os principais cientistas da história da humanidade talvez possam não concordar com a ordem da lista. Mas os nomes, com certeza, não deverão fugir de Galileu, Newton, Darwin, Einstein e, por que não, do cientista francês Louis Pasteur. A mítica em torno desse homem, antes e depois de sua morte, em um fim de tarde de sábado, 28 de setembro de 1895, aos 72 anos, é grandiosa. E esta conseqüência abstrata da obra de Pasteur, ele mesmo - de forma consciente e deliberada - ajudou a formar ao longo de sua rica e gloriosa vida científica. Os cadernos de anotações de Pasteur, por sua vontade, jamais deveriam chegar ao conhecimento público. Desde a morte do cientista, os documentos ficaram nas mãos da família. Em 1964, o último descendente direto do verdadeiro herói francês do século XIX, Pasteur Vallery Radot, neto de Pasteur, resolveu doar todos os documentos à Biblioteca Nacional de Paris. Apenas em 1985, 14 anos depois da morte de Vallery Radot, surgiu o primeiro catálogo impresso da rica (em tamanho e conteúdo) coleção de anotações particulares, a maioria feita sobre a bancada do laboratório de Louis Pasteur. A história oficial é farta em registrar seus grandes feitos. Ela indica uma verdadeira "revolução pasteuriana" com as descobertas do cientista no campo das vacinas. Pasteur também estudou cristalografia, o processo de fermentação e ajudou a derrubar a teoria da geração espontânea. Em todos estes campos, ao mesmo tempo que se revelava um trabalhador incansável, Pasteur reservava critérios rigorosamente definidos aos experimentos. Isto é o que sempre se soube. Mas o livro "A Ciência Particular de Louis Pasteur", de Gerald Geison (Contraponto/Fiocruz, 455 págs., R$ 46, tradução de Vera Ribeiro), sustenta que o cientista agiu com base em idéias preconcebidas. Geison diz que, quando algo saía errado para o pesquisador, ele não se furtava até mesmo de esconder algumas informações para que as teorias pudessem seguir em frente. O dia 2 de junho de 1881, uma quinta-feira, entrou para os anais da história da microbiologia. A fazenda do veterinário Hippolyte Rossignol, localizada na pequena cidade de Pouilly-le-Fort, serviu de cenário para o primeiro teste da vacina para o combate à carbunculose, organizado por Pasteur e seus principais colaboradores. A doença, para os criadores franceses de ovelhas da época, significava grandes prejuízos econômicos. O resultado - e o próprio Pasteur sabia disto quando entrou na fazenda, em razão de uma mensagem enviada a ele naquela manhã - encheu de glórias o time de pesquisadores. A vacina funcionou. Dos 50 carneiros, 25 morreram. Os demais, todos vacinados, sobreviveram à carbunculose. O desfecho previsto, e alardeado com muita antecedência por Pasteur, realmente ocorreu. A preconcepção do ideal pasteuriano ganha um novo reforço apenas agora, mais de cem anos depois de sua morte. Os bastidores do teste da carbunculose são emblemáticos. Servem para entender não apenas o procedimento científico da época, mas também do próprio autor. Independentemente do resultado prático obtido com os animais, a comunidade científica precisava saber mais. Em questões cruciais como a da vacina contra a carbunculose, o método como ela foi preparada ganha um peso enorme. Neste ponto, além de aniquilar cientificamente os próprios adversários na corrida por esta conquista, Pasteur protagonizou um grande engodo. Pelos relatos da época, fica a impressão de que as vacinas tinham sido preparadas a partir da exposição de culturas do micróbio ao ar atmosférico. Como um ano antes Pasteur tinha usado o mesmo método para combater a cólera entre as galinhas, tudo se encaixava. Tudo fazia sentido aos olhos e ouvidos da sociedade científica de Paris. Os dados apresentados agora por Geison mostram uma outra versão. Citando o diário de Pasteur a questão se resolve por completo. As vacinas, na verdade, foram atenuadas pela utilização do bicromato de potássio. Esta informação fora omitida na época porque Pasteur não queria abrir mão do método que acreditava ser o ideal. É verdade, também, que em nenhum de seus trabalhos o cientista francês declarou ter usado um método diferente do que realmente utilizou. Ele nunca detalhou como obteve a vacina. Apesar do grave equívoco, está muito longe da verdade atribuir ao fato a denominação de fraude científica. Anos mais tarde, o método que Pasteur gostaria de ter usado no primeiro teste com os carneiros realmente seria definido como regra. O que merece destaque é que, com medo de fracassar completamente, Pasteur resolveu utilizar uma forma de atenuar os microorganismos, diferente daquela que ele acreditava ser a melhor. Isto ocorreu, no entanto, porque naquela época usar o bicromato era uma forma mais segura de se conseguir preservar o animal que fosse vacinado. O mérito de desenvolver este mecanismo era de Charles Chamberland, um dos assistentes do herói francês. Ele, assim como outros pesquisadores ao lado do mestre - Émile Roux era um dos mais queridos de Pasteur -, sempre viveram à sombra do principal nome da microbiologia mundial daqueles tempos. Apesar disto, não apenas estes dois assistentes, mas todos aqueles que trabalharam ao lado de Pasteur ajudaram, e muito, na construção de um mito logo após a morte dele. Na verdade, eles também dependem desta relação. Quanto mais altos estivessem os ideais pasteurianos, mais altos estariam eles próprios. Os trabalhos publicados pelos discípulos de Pasteur após a morte do mestre, mesmo que discutissem alguns de seus conceitos, jamais deixaram de lado a apologia ao mito, ao herói. Como relata Geison em sua obra, apenas um dos assistentes, Adrien Loir, que por ironia do destino era também sobrinho do mestre, resolveu colocar um pouco mais de peso em sua escrita. "Não obstante, quero insistir em que tais ensaios representam o primeiro e mais importante passo, ainda que amiúde não reconhecido, para a desconstrução do mito tradicional de Pasteur", escreve Geison, em vida catedrático em história na Universidade de Princeton. Os ensaios escritos por Loir foram publicados em 1937 e 1938. Por um longo tempo, talvez até pela forma pouco precisa com que foram escritos, eles ficaram esquecidos. Durante toda a sua trajetória, além dos vários cargos importantes ocupados ao longo da vida, como o de Diretor de Estudos Científicos da tradicional École Normale de Paris, Pasteur também soube muito bem interligar a ciência com a política da época. E, quando preciso, apoiado por fortes ideais católicos que imperavam na França daquele tempo. O episódio que envolve as experiências em busca de derrubar a teoria da geração espontânea tem vários destes ingredientes, como os próprios diários de Pasteur revelam. É sempre importante voltar ao tempo das discussões para que se possa entender melhor as posições de todas as partes - e este é um dos pontos altos deste grande livro. Assim como a sociedade científica contemporânea discute assuntos como a clonagem humana ou os alimentos geneticamente modificados, a geração espontânea, hoje motivo de ridicularizações, era a bola da vez naquela época. De forma brilhante, com os seus frascos em forma de pescoço de ganso, Pasteur ajudou a derrubar esta teoria de que a vida poderia ser gerada independentemente de qualquer progênie, seja de matéria orgânica ou inorgânica. O cientista mostrou, com exatidão, que os invisíveis micróbios estavam gerando a vida. Não havia mais como os contrários a esta teoria continuarem a defender os seus pontos de vista entre os científicos. Pasteur não apenas conseguiu implacar suas teorias pessoais, que também tinham a ver com seus estudos sobre fermentação, como também agradou o conservador Estado Francês. O governo sempre esteve ao lado dele com verbas para as pesquisas. "Um cientista (daquele tempo), parece ser lícito dizer, teria ficado surpreso ao saber que Pasteur conseguira travar uma eloqüente campanha pública contra a geração espontânea enquanto especulava com a criação da assimetria (portanto, da vida) em sua própria versão especial dessa doutrina perigosa". Um dos grandes sonhos de Pausteur não realizados talvez tenha sido o de não conseguir mostrar a relação que existia entre a assimetria - ele estudou isto em compostos químicos - e a vida. Mesmo sem ser um católico fervoroso, Pasteur ficou do lado da Igreja com sua ciência. Na França daquele tempo, defender a geração espontânea, ou até mesmo a teoria da evolução, era negar por completo a presença de Deus. As idéias preconcebidas de Pasteur, desde a construção de seu próprio mito até seu o dia-a-dia científico, também permitiram outros deslizes. No caso da dramática história da criação da vacina anti-rábica, as experiências, em determinados casos, colocaram em risco a vida das pessoas de forma até certo ponto inconseqüente. O mesmo já havia ocorrido com os carneiros, se é que esta comparação pode ser feita sem distorções. Na ciência particular do maior cientista francês de todos os tempos, alguns procedimentos metodológicos fugiram dos manuais científicos mais equilibrados. A discussão sobre idéias preconcebidas e os resultados obtidos durante uma experiência será eterna. Mesmo que o autor tenha tido a intenção de destruir o mito Pasteur antes de começar sua extensa pesquisa, o livro não deixa dúvidas. As histórias dos heróis da ciência - o que vale também para Newton, Galileu, Darwin e Einstein - precisam sair da sombra. Eles nem sempre estão a salvo. Sala com material e instrumentos científicos (coleção com mais de mil peças !): balões contendo meios de cultura originais; microscópios; polarímetros; autoclaves, etc., permitem ilustrar, com grande precisão, trabalhos realizados por Louis Pasteur. Nota do Managing Editor: Este texto, de autoria de Eduardo Geraque, foi publicado primeiramente no jornal Gazeta Mercantil, de 27-29 de dezembro de 2002, caderno Fim de Semana. A foto que figura após o texto não faz parte do original. Foi obtida no site http://www.pasteur.fr. |
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