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ARTIGOS DE OPINIÃO
Modernas transgressões Quase não existe mais o telefonema anônimo. Ligou, o Bina conta. Não dá para mudar de idéia. A não ser que se vá esconder-se dentro de um anônimo orelhão.
Já vai longe o tempo em que se punha pimenta nos dedos das crianças para que não roessem as unhas, pois agora precisamos defender o mundo das ligações e do fluxo de comunicação que nasce da ansiedade das pessoas estressadas. É o ímpeto de dizer já. A impossibilidade de esperar. É quando o outro deixa de ser uma pessoa com seu espaço e tempo. O outro torna-se o receptor apenas. Invade-se o território, o tempo e o pensamento do outro para descarregar a ansiedade. Quando uma pessoa chega atrasada para um compromisso, ela está invadindo a consciência de quem a espera. Este, durante a expectativa da chegada, é tomado pela figura de quem não chega. É também uma invasão. Uma explosão irada também invade o universo do outro. E isso continua assim. O atraso sistemático é uma transgressão na medida em que captura a atenção do outro - não importa o quanto isso possa desorganizar o espaço alheio. Some-se a isso essa potência que é o telefone - fixo ou celular. É a conexão permanente. Cada um de nós tem o mundo à sua mercê e está à mercê do mundo. E a tecnologia vai se aperfeiçoando. Quase não existe mais o telefonema anônimo. Ligou, o Bina conta. Não dá para mudar de idéia. A não ser que se vá esconder-se dentro de um anônimo orelhão. A tecnologia se complica, mas as fantasias de invasão e dominação vão tomando novas formas. É como se existisse uma luta campal, na qual privacidade, angústia, transgressão, agressão estão em permanente jogo de gato e rato. Pela minha experiência, o telefone e suas múltiplas possibilidades são necessidades que nos fragilizam. As ondas sonoras descarregam ansiedade num lado do fio e a geram do outro lado. E há o telefone, e a secretária eletrônica, e a caixa postal, e o celular... Não os termos em funcionamento é desrespeito. As pessoas podem precisar nos contatar. Ter tudo em bom funcionamento é estar sendo roubado do sossego e da paz. Ninguém me telefonou. Nota do Managing Editor: O presente texto, de autoria de Anna Verônica Mautner, foi primeiramente publicado na Folha de São Paulo, em 20 de março de 2003, no caderno Folha Equilíbrio, p. 12. |
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