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ARTIGOS DE OPINIÃO
A falta que Nelson Gonçalves nos faz. "Vestida de azul e branco, trazendo um sorriso franco num rostinho encantador. Minha linda normalista, rapidamente conquista meu coração sem amor..." - "Normalista", de Benedito Lacerda e David Nasser, sucesso de Nelson Gonçalves, em 1949. Há pouco mais de 50 anos, as professoras primárias ainda gozavam de um prestígio social diferenciado e o Brasil celebrava a beleza das jovens normalistas, que em seus bem-cuidados uniformes alegravam as ruas das pacatas cidades de então. Hoje, apenas na memória coletiva da nação, essa lembrança sobrevive, pois a par com o avanço na massificação da educação básica veio a degradação da carreira do professorado do ensino fundamental: salários desestimulantes, jornadas de estudo que não possibilitam o aperfeiçoamento profissional e péssimas condições de ensino/aprendizagem. Nas brumas do tempo, se foram a grande voz de Nelson Gonçalves, as saias plissadas das normalistas e o reconhecimento social e econômico das mestres-escola. No outro extremo da pirâmide educacional, o professor universitário reteve por um mais longo período sua aura especial. Por décadas, a carreira universitária serviu como fonte de prestígio ainda maior para médicos, engenheiros e advogados que, além do exercício profissional extramuros, dedicavam algumas horas por semana à transmissão de suas experiências para as novas gerações. Em um Brasil ainda sem claro projeto de desenvolvimento e modernização, as incipientes Universidades brasileiras se constituíam em federações de escolas profissionais isoladas, exclusivamente voltadas para o ensino, e os professores universitários, o destaque intelectual de suas províncias, eram objeto de merecidas referências e de deferências. Nos últimos trinta anos o Brasil se modernizou e o aumento da exigência sobre o nível de qualificação dos professores da rede pública levou à progressiva extinção dos antigos cursos normais. A expansão do acesso ao ensino fundamental se fez, no entanto, com paralelo degradar das condições de ensino, e a conseqüente proletarização do professorado correspondente. Enquanto isso, a partir do final dos anos 60, a Universidade se transformava radicalmente com o conceito de professor em tempo integral e em regime de dedicação exclusiva. Uma nova geração de profissionais passou a celebrar contratos informais com a nação brasileira ao se tornarem professores e pesquisadores em tempo integral nas Universidades públicas brasileiras. Parecia ser o melhor dos mundos possíveis: não se faria fortuna, mas em compensação os jovens dessa primeira geração de brasileiros com estudos pós-graduados seriam pagos para, - enfim, com as condições negadas a seus antecessores - integralmente se dedicar ao que gostavam: ensinar e pesquisar, cuidar da formação das próximas gerações de talento e ajudar o Brasil a crescer. A aposentadoria era algo distante, e não havia razões objetivas para temê-la: afinal, a profissão de professor universitário continuava a desfrutar de seu prestígio social e qualquer cálculo atuarial mostraria com facilidade que as contribuições previdenciárias, compulsoriamente recolhidas a cada mês em mãos de um depositário supostamente fiel - o Estado Brasileiro -, formariam um pecúlio capaz de assegurar um tranqüilo e ainda remoto afastamento, com a promessa da segurança de uma velhice confortável. Nessa Universidade que mudava, a pesquisa, inicialmente vista por alguns como uma atividade exótica e desvirtuadora do ensino, terminou por se fazer presente por todo o país e em todas as áreas do conhecimento. Os exemplos de sucesso foram - e continuam a ser - muitos, e nesse curto período a nação foi capaz de construir um robusto (e internacionalmente invejado) sistema de pós-graduação, responsável pela formação de mais de 6 mil novos doutores a cada ano. A atrasada modernização brasileira continuava no entanto a ocorrer, e o progressivo aumento da cobertura do ensino médio deslocou o foco das tensões educacionais para a questão do acesso ao ensino superior. Mas, embora o mundo real estivesse a pulsar lá fora, a Universidade pública se deixava envolver em uma letargia de propósitos. Enrijecida por um modelo unitário que a vê como idêntica do Oiapoque ao Chuí, presa a conflitos internos de visão corporativa e gerencial, ela não soube acompanhar a dinâmica do mundo externo. A massificação finalmente atingiu o ensino de 3o grau com a explosão das instituições privadas de ensino superior, e trouxe uma crise de identidade à profissão do magistério superior. No momento, a abertura forçada de nosso mercado educacional às multinacionais do ensino está em discussão na Organização Mundial de Comércio. Diante desse quadro, o que significa ser professor universitário no Brasil de hoje? Dentro do mal-equilibrado projeto de integração internacional acelerada da economia brasileira, implementado na última década, sobraram incertezas sobre o papel reservado às instituições universitárias nacionais. Se, por um lado, a nação tem de (finalmente) enfrentar o problema de como assegurar a formação de terceiro grau a uma fração cada vez maior de sua juventude, por outro lado não pode comprometer a excelência e a robustez de um sistema de pesquisa e ensino pós-graduado umbilicalmente ligado a suas Universidades públicas. Aos professores dessas instituições, uma década de constrangimentos orçamentários e arrocho salarial ímpar se fez acompanhar por um tratamento desrespeitoso que por vezes chegou aos limites do puro deboche. Porém, à medida que o desprestígio social e a proletarização da profissão se tornaram mais que simples espectros a rondar o campus, cada vez mais o regime de dedicação exclusiva e em tempo integral às atividades universitárias passava a ser internamente poluído pela silente aceitação de fórmulas individuais de sobrevivência. Teria a semente do mal sido irreversivelmente implantada na própria alma do sistema? Hoje, às incertezas sobre salários e condições de trabalho se somam as angústias sobre uma reforma da previdência muito falada, mas pouco debatida em sua inteireza. As maiores e melhores Universidades brasileiras já se alarmaram com a possibilidade de uma enxurrada de aposentadorias a ocorrer nos próximos meses, caso a reforma universitária venha a ser percebida como uma ruptura unilateral dos contratos de confiança três décadas atrás celebrados com o Estado brasileiro. Aos que ficarem, restará uma universidade pública ainda mais enfraquecida, perplexa e desorientada quanto a seu verdadeiro papel na sociedade brasileira de hoje e de amanhã. Como as normalistas de meio século antes, os professores universitários em tempo integral e real dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa podem estar a atravessar seu canto do cisne, e sem nem mesmo terem chegado a partilhar da honra de ver o cancioneiro popular registrar sua existência no imaginário da nação. Nota do Managing Editor: O presente texto, de autoria do Professor Celso de Melo Pinto, do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco, foi primeiramente publicado no Jornal da Ciência, da SBPC, em 16 de maio de 2003, p. 1 e 10. |
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