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ARTIGOS DE OPINIÃO

Relativizando Ciência e Comunicação

Neste artigo adotamos uma concepção de Ciência, que tenta, de um lado, romper com a tradição lógico-positivista, que isola o cientista e sua produção dos contextos em que ambos são produzidos, e, de outro, oferecer possibilidades de compreensão e apropriação social do conhecimento e de seus benefícios, a partir da comunicação - o que para nós é uma questão de cidadania.

Assim, fugindo dos manuais que insistem na objetividade, desinteresse, sistematismos e questões do gênero, como prega a boa tradição Mertoniana, ancoramos numa postura mais relativista: a realidade científica é aquilo que resiste ao teste de força das negociações que se travam nos laboratórios com equipamentos, recursos humanos e não humanos, inscrições, controvérsias com outros cientistas e, por que não dizer, com a própria sociedade.

Nessa perspectiva, o laboratório científico consiste na materialização de seleções prévias, que mudam as condições de tomadas de decisões subseqüentes: os produtos científicos não só estão impregnados de decisões como impregnam decisões. O fato científico é resultado da soma de seleções feitas ao longo do processo de investigação. Os produtos científicos, como pontua a socióloga Knorr-Cetina, são "ocasionados" pelas circunstâncias de sua produção, isso significa dizer que as circunstâncias são partes integrantes dos produtos que emergem.

O chamado caráter "ocasionado" do trabalho científico se manifesta no papel que assume tudo o que rodeia visivelmente o lugar da pesquisa: os edifícios, os aparatos de medida, os materiais armazenados, as revistas, os livros nas bibliotecas do laboratório, os técnicos especializados, e, também, os objetos menos materiais, como os processos de regulação das jornadas de trabalho dos técnicos e as políticas para se conseguir dinheiro para a manutenção das pesquisas.

Os animais e outros produtos básicos para os testes são, ainda, no entendimento da autora, fontes constantes de decisões "ocasionadas", pelos imprevistos que podem provocar nos processos de investigação. Ela também chama atenção para aspectos menos tangíveis da construção indexical, como as interpretações locais e a variação nas regras e critérios de decisão. Aqui estão inclusos, entre outros, problemas decorrentes da falta ou substituição de materiais, as limitações de tempo e espaço e as questões de natureza política.

Pode-se observar que esta visão de ciência não parte dos conteúdos já significados, mas do processo de construção de significados. Melhor dizendo, do lugar onde os significados são negociados em decisões que vão sendo tomadas ao longo do processo de investigação. Decisões que sofrem influência não apenas dos fatores internos, embora o método tenha fortes características internalistas; mas, também, de fatores externos ao ambiente de produção, como as políticas públicas, por exemplo.

Como diz outro sociólogo da Ciência, Bruno Latour, a entrada no mundo da ciência e da tecnologia se dá pela porta de trás, a da ciência em construção, e não pela entrada mais grandiosa, que é da ciência acabada. Se a ciência tem, como diz ele, duas faces - uma que sabe e a outra que ainda não sabe -, é importante ficar com a mais ignorante, com o mínimo possível de idéias sobre aquilo que se constitui ciência. Ao entrar no laboratório, entendido aqui numa perspectiva mais ampla, como o lugar onde o cientista trabalha, o investigador, que opta pela segunda face da ciência, tem a oportunidade de encarar a "caixa-preta" antes que ela seja fechada.

Se a ciência pronta, como reza a tradição positiva, possui certeza, frieza, distanciamento, objetividade, isenção, a pesquisa, como frisa Latour, no seu locus, apresenta características opostas: é incerta, aberta, e está sempre às voltas com problemas "insignificantes", como dinheiro, instrumentos, capacidade técnica, incapaz de fazer distinções de natureza objetiva. Não prospera desvinculada do coletivo, porque, na essência, é uma grande experimentação coletiva que envolve humanos e não humanos (objetos, animais, bactérias), num processo cujo significado é sempre controverso. A ciência pronta não se revela, embora esteja impregnada de decisões.

Comunicação - Knorr-Cetina, num texto recente, aponta duas atitudes relacionadas à comunicação da Ciência: uma tradicional, representada pelo modelo Standard, e a outra influenciada pelos Science Studies. No primeiro modelo a comunicação é a transmissão de mensagens de um emissor para um receptor, envolvendo meios técnicos tais como a fala, a escrita, entre outros. O que se supunha interessante em vários estudos prévios da ciência não eram os processos de comunicação em si, mas antes, segundo ela, o conteúdo proposicional da comunicação, uma teoria ou uma descoberta científica.

A comunicação, nesse contexto, está diretamente ligada às questões de produtividade e ao sistema de recompensa em ciência: aquilo que interessava era a quantidade de produções científicas na medida em que ela se encontrava relacionada com outros fatores (estrutura organizativa, por exemplo), ou características relacionadas com a produção própria de um determinado domínio, como a contagem e os padrões da citação ou da co-citação. Assim, a comunicação não só apresenta à determinada comunidade o estado atual do conhecimento em determinado campo, como também submete o autor à avaliação de seus pares, dos quais, partindo do suposto Mertoniano, ele espera reconhecimento - moeda de troca através da qual pesquisadores individuais podem alcançar melhores posições dentro de uma hierarquia acadêmica.

A segunda atitude, de acordo com a socióloga alemã, pode ser resumida pela idéia de que as elocuções comunicativas são atos de palavra; elas realizam ações, ou, na terminologia da teoria dos atos de palavras, têm uma força ilocucionária que não depende do seu conteúdo proposicional: quando fala, o emissor está fazendo alguma coisa, e não apenas descrevendo determinada situação. Há três atos de fala distintos: o ato locutório, ou o ato de dizer alguma coisa; o ato ilocutório, produzido ao se dizer alguma coisa; e, finalmente, o ato perlocutório, ou o efeito causado pelo que se disse.

A idéia de que a comunicação e particularmente a fala e a escrita são intrinsecamente processos ativos, tornou possível, de acordo com a autora, entender a comunicação como "uma esfera da atividade social de direito próprio, no interior da qual as mensagens não são apenas preservadas ou transmitidas, mas formadas e construídas". Isso, segundo ela, faz reavivar o interesse na comunicação, na medida em que esta inclui estratégias de persuasão. Este modelo abriu as portas para estudos das negociações interativas e da definição de sentido por dois ou mais participantes do processo da comunicação.

Essa concepção, diz ela, "não só assume que as mensagens se modificam na interação, mas igualmente que há resultados emergentes - efeitos da interação aos quais os participantes poderiam chegar por si mesmo". Finalmente, continua, "o esbatimento da distinção entre palavras e obras, entre comunicação e ação, tornou emblemáticas quaisquer fronteiras entre, por um lado, a investigação e o trabalho científico, e, por outro, a comunicação dos resultados dessa investigação". A comunicação, conclui, "infiltra a investigação, e é pelo menos tão relevante para ela como o é para as questões relativas a gesto de tornar públicos os resultados".

Nota do Managing Editor: Cidoval Morais de Sousa é jornalista, professor universitário, doutorando em Geociências pela Unicamp e diretor acadêmico da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) (cidoval@unitau.br). Este texto (aqui, apresentado na íntegra) foi primeiramente veiculado pela Agência Brasil, em 23.01.2004.

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