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ARTIGOS DE OPINIÃO
O que há por detrás de um nome? No cadinho da ciência moderna, a fronteira da Química está sendo rebatizada como biologia ou nanotecnologia. David Adam conjectura se a falsa modéstia está deixando os químicos com as migalhas de sua própria tabela periódica. Da descoberta de drogas que salvam vidas à explosão de atividades na área dos nanotubos de carbono, os novos desenvolvimentos da Química acabam sendo apropriados por outras disciplinas. Para os pesquisadores empenhados em conseguir o reconhecimento que a disciplina merece, a Química simplesmente não fica mais doce quando adota outro nome. Quando as fronteiras da Química se tornam menos nítidas, em virtude de colaborações com físicos e biólogos, é mais do que hora dela começar a reivindicar suas próprias realizações, caso contrário, correrá o sério risco de não mais conseguir atrair jovens cientistas, brilhantes e promissores, dizem os pesquisadores. George Whitesides, químico da Universidade de Harvard, concorda que filões mais interessantes e instigantes da Química acabam sendo rotulados com algum outro nome. "Isso é uma coisa que nunca entendemos a respeito dos químicos", diz . "Eles são profundamente modestos. Desenvolvem técnicas interessantes, outros se apropriam delas e as usam, sem que ninguém grite. Você não vai encontrar um biólogo que se cale frente a alguém que tome algo que os biólogos estejam fazendo". Heróis não reverenciados O laboratório de Whitesides seria um lugar adequado para se começar uma campanha buscando reverter essa tendência. Ele se vale de técnicas tradicionais de química para investigar desde como bactérias colonizam superfícies até o desenho de pilhas de combustível. Um dos principais interesses de seu grupo é a síntese de membranas celulares artificiais. Pesquisadores podem utilizar tais membranas para estudar como enzimas e açúcares adsorvem e são reconhecidos nas superfícies de células vivas. "Se você pensar no que tem acontecido em biologia, verá que muito depende da Química", diz Whitesides. A pesquisa inicial sobre DNA, destaca ele, foi feita por químicos. "Você não teria DNA sem os procedimentos sintéticos para fazer ácidos nucléicos e géis para separar essas coisas. No entanto, isso agora vem sendo chamado de biologia". Os químicos também desempenharam papel central no desenvolvimento da ressonância magnética e do sub-produto médico: a construção de imagem por ressonância magnética (MRI). Mas MRI é, em geral, vista como um exemplo de como a física pode contribuir para a pesquisa biomédica. Assim como os torcedores de um time de futebol pobre, da 2a divisão, os químicos cresceram se acostumando a ver seus craques transferidos para times mais poderosos. Mesmo temas químicos que ganham o Prêmio Nobel não permanecem como pertencentes à Química por muito tempo. A descoberta das esferas de carbono, conhecidas como "buckyballs", foi reconhecida com o prêmio Nobel de Química em 1996, todavia, muitos dos trabalhos que se originaram de tal descoberta são, agora, considerados como sendo de Física Aplicada ou de Nanotecnologia. Deveriam os químicos ficar preocupados com exemplos como esses? Sim, pois embora colaborações sejam benéficas para a Ciência, os químicos trazem habilidades únicas para esses projetos, portanto, a eles e à Química devem ser creditados. É de fato significativo que os resultados passem a ser nomeados usando-se alguma outra denominação? O químico de Harvard, Sterart Schreiber, acredita que sim. "Poderíamos dizer que é uma questão de semântica ou de percepção", todavia, "percepção e semântica podem ser importantes", uma vez que "você pode estar passando a mensagem errada para os estudantes do colegial, que estão tentando escolher em que área da ciência pretendem estudar na universidade". Trabalhando em estreita colaboração com biólogos, no Instituto de Química e Biologia de Harvard, o grupo de Schreiber sintetiza pequenas moléculas orgânicas e as utiliza para estudar as funções das proteínas. Essas moléculas se ligam às proteínas e alteram suas funções - "desligando" certas enzimas, por exemplo. Conhecida como "genética química", a técnica permite aos pesquisadores examinar o papel de proteínas individuais sem provocar a mutação dos genes que codificam sua síntese. (ver Nature 407, 282-284 - 2000). Pergunta Schreiber: "Agora, chamamos a isso de Química ou biologia?" Ambas, responde. Você está fazendo biologia fundamental e química fundamental. Esta abordagem não existiria sem as duas ciências integradas. Então, por que a Química, nessas colaborações, é geralmente vista como a parceira silenciosa? Para Schreiber, a razão está na dificuldade de se explicar a Química para os não especialistas. "Uma das características comuns dessas colaborações é que a pesquisa é iniciada num laboratório de química pura", diz ele. "A Química é complexa, mas a biologia geralmente pode ser descrita em termos que uma audiência maior poderia entender". À guisa de exemplo, Schreiber descreve como químicos descobriram a molécula que inibe a enzima HIV protease, crítica para a replicação do vírus da AIDS. Surgiram, então, novos tratamentos para a AIDS. "O Homem do Ano, da Revista Time, foi David Ho, um pesquisador clínico de AIDS", diz ele. "O público entendeu que esta foi uma grande descoberta da Química? Ho fez um trabalho maravilhoso, mas o foco estava tão concentrado na parte final, de natureza clínica, que se perdeu a visão de onde a aplicação se originou". Schreiber e Whitesides dizem que a força motriz para a pesquisa interdisciplinar está vindo de pesquisadores jovens, ansiosos para abrir suas asas. Alguns químicos seniores são menos entusiastas, diz Schreiber, apontando esta como uma das razões pelas quais a Química não tem conseguido deixar sua marca nas contribuições que faz à áreas emergentes. Outros há, ainda, que argumentam que os químicos têm a tendência de abandonar o objeto de investigação, quando sentem que estão se afastando da química "pura". Michael Ward, químico de materiais da Universidade de Minnesota, assevera que a pesquisa química nas universidades tem se restringindo a certas áreas: "Os departamentos de química têm se isolado ao se concentrarem naquilo que entendem como ciência básica, deixando de lado certos problemas de pesquisa". Diz, ainda, que "coisas como polímeros e surfactantes foram absorvidos por engenheiros químicos e cientistas de materiais, mas isto agora está mudando e a Química está tentando reaver essas temáticas". Heindirk tom Dieck, secretário geral da Sociedade Química Alemã, afirma que a contribuição da Química pode estar sub-estimada porque ela não produziu ainda um mega-projeto, de alto custo e ruidoso, como o projeto genoma humano ou de exploração espacial. Problema de imagem Seja qual for a causa do problema de imagem da Química, a Sociedade Americana de Química (ACS) é considerada por muitos como o organismo melhor equipado para modificar a situação. Com mais de 160.000 membros é a maior organização científica do mundo. "Creio que a ACS trabalha incansavelmente para criar uma imagem adequada e positiva da Química", diz Schreiber. "Por outro lado, acredito que muitas das pessoas envolvidas não foram expostas à Química, na interface com as modernas disciplinas vizinhas, e, desse modo, tendem a sub-avaliar este componente da nossa disciplina. O que provavelmente seja necessário é uma geração mais nova de porta-vozes e autores que tenham uma melhor visão do que está acontecendo nas áreas da Química que evoluem muito rapidamente". A ACS diz estar tentando chegar lá. Um recente levantamento mostrou que por volta da metade de seus membros tem menos de 50 anos, o que ocorre pela primeira vez nos seus 125 anos de existência. "Conseguimos mudar a demografia. Os membros mais jovens estão ajudando verdadeiramente a tornar a sociedade mais interdisciplinar", diz Nancy Ryan Gray, diretor da ACS. A ACS também está tentando promover o envolvimento da Química em disciplinas emergentes, organizando conferências e publicando novos periódicos sobre assuntos como proteônica e nanotecnologia. Na Grã-Bretanha, a Real Sociedade de Química (RSC) informa que está flexibilizando seus critérios para ingresso em seu quadro associativo, respondendo ao recente crescimento do uso da Química nas áreas biológicas. Pesquisadores que não possuem uma formação clássica em Química, mas trabalham em "Ciências Químicas" são elegíveis para se associar, diz Neville Reed, gerente geral de recrutamento e comunicação. Segundo Reed, isto é parte de um movimento visando aglutinar diferentes partes para a construção de uma imagem mais forte e mais excitante da pesquisa química. Contudo, considera inevitável que alguns elementos sejam apropriados por outras disciplinas. "Química sempre foi uma disciplina prestadora de serviços, sempre fornecendo conhecimento e habilidades utilizadas em outras áreas", diz. Argumentam outros que nem todos os projetos de colaboração são benéficos para a Química. Conforme Julius Rebek, químico que estuda moléculas auto-replicantes, no Instituto de Pesquisa The Scripps, na Califórnia, "a Química está tentando se alinhar com a excitação proveniente da genômica e com todas as promessas que a biologia traz", mas "a química envolvida não é de fronteira; é muito bem conhecida e explorada". Rebek acredita que o trabalho verdadeiramente pioneiro na interface das duas disciplinas está relacionado à tentativa de criar sistemas biológicos sintéticos usando química. Os grandes desafios, diz ele, são tarefas como aquelas de se "criar uma célula viva a partir do zero e construir moléculas que mostrem sinais de vida". Para Rebek, isso é química pura. "Afinal, você não se tornaria um biólogo até conseguir o sucesso". Seja qual for o nome dado a tais projetos, os químicos precisarão ser mais afirmativos se quiserem que os resultados tenham a marca da Química. As sociedades científicas podem desempenhar um importante papel, mas quando chegamos à ações decisivas, cabe aos químicos, individualmente, defender seu território. É chegada a hora de perder um pouco da modéstia. "O que precisamos é que os químicos desempenhem seus próprios papéis e sejam orgulhosos do que fazem", diz Reed. Nota: Este texto é uma tradução livre de excertos do artigo publicado na Revista Nature, volume 411, p.408, de 24 de maio de 2001, gentilmente realizada pelo Prof. Paulo Sérgio Santos (Instituto de Química da USP), a convite do LQES. |
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