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ARTIGOS DE OPINIÃO

Conflito de interesses: um desafio inevitável

Na exata medida em que vem crescendo a importância da pesquisa científica e tecnológica no contexto da vida econômica, tornam-se mais freqüentes situações em que os resultados do desenvolvimento de projetos de pesquisa promovem ou contrariam interesses econômicos objetivos, seja dos pesquisadores neles envolvidos, seja de empresas ou instituições responsáveis por seu financiamento, ainda que parcial. Até que ponto essa situação interfere na fidedignidade científica desses resultados? Como medir o grau dessa fidedignidade em cada caso? Quais os parâmetros relevantes para medi-lo? Em todo o mundo, há hoje um debate intenso e salutar sobre essas questões, envolvendo agências de fomento, publicações científicas, universidades, pesquisadores, empresas e governos. Por exemplo, o New England Journal of Medicine, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo, tem publicado vários artigos a esse respeito.

Para melhor ilustrar a complexidade do problema e a relevância desse debate, consideremos um caso típico e ordinário. Antes de ser colocado no mercado, por uma empresa farmacêutica, um novo medicamento, pesquisas devem ser realizadas a fim de determinar se ele é realmente eficaz e se não tem efeitos colaterais nocivos. Via de regra, tais pesquisas contam com financiamento da empresa - objetivamente interessada em demonstrar que seu produto é bom e inofensivo - e, muitas vezes, são realizadas por pesquisadores por ela empregados ou contratados - objetivamente interessados no sucesso financeiro da empresa, de que depende, por exemplo, a manutenção de seus empregos ou a obtenção de futuros contratos e financiamentos.

A esses interesses, soma-se o interesse ético e profissional dos pesquisadores em realizar seu trabalho segundo a boa metodologia científica, bem como o interesse da sociedade em dispor de um produto apto a resolver problemas de saúde, mas com garantias razoáveis de que os riscos de possíveis efeitos colaterais tenham sido adequadamente avaliados. Esses múltiplos interesses podem, é certo, convergir - mas também é certo que podem divergir. Seja como for, configura-se uma situação, bem descrita pelo termo "potencial conflito de interesses", cujas ressonâncias tanto éticas quanto propriamente científicas não podem ser subestimadas.

Suponhamos que alguém seja encarregado de apitar um jogo de futebol de que participe seu filho. Tratando-se de uma pessoa absolutamente íntegra, o potencial conflito de interesses é extremo: o desejo de que o filho tenha sucesso pode conflitar com o desejo de conduzir-se de maneira completamente imparcial. Se todas as decisões de um juiz de futebol pudessem ser tomadas mediante a aplicação mecânica de regras explícitas, a existência desse conflito, na hipótese da integridade do juiz, em nada poderia interferir no resultado final do jogo. Ocorre, porém, que muitas dessas decisões dependem de avaliações que comportam boa dose de subjetividade e é precisamente aí que o potencial conflito faz sentir seus efeitos: involuntariamente, pode ser tomada uma decisão favorável ao filho, que não seria tomada em outras circunstâncias; ou, pelo contrário, na ânsia de agir com isenção, o juiz pode tomar uma decisão prejudicial ao filho, que não seria tomada em outras circunstâncias. Em suma, o potencial conflito de interesses pode interferir no exercício da capacidade de julgar do juiz, de uma maneira que não pode, por princípio, ser por ele precisamente identificada, controlada ou evitada. Ainda que, de fato, não interfira, a percepção do grau de isenção de suas decisões será inevitavelmente afetada pela existência do potencial conflito de interesse.

Em muitos aspectos, as conseqüências de um potencial conflito de interesses na pesquisa científica e tecnológica são da mesma espécie. Com efeito, em vários momentos de seu trabalho, os pesquisadores são obrigados a tomar decisões cuja correção não se pode medir, de antemão, por nenhum conjunto de regras precisas e explícitas - decisões relativas, por exemplo, a estratégias alternativas de condução da pesquisa ou à determinação do valor de dados certamente relevantes, porém não inteiramente conclusivos, ou até mesmo conflitantes entre si. Nesses momentos, a qualidade das decisões tomadas depende essencialmente de uma capacidade de julgar dos pesquisadores que se poderia chamar de "bom senso metodológico", fruto principalmente da conjugação de sua experiência com seu talento. É o exercício dessa capacidade que pode ser involuntariamente afetado por potenciais conflitos de interesses - de uma maneira que não pode, por princípio, ser por eles precisamente identificada, controlada ou evitada. Também aqui, a percepção do grau de isenção das decisões tomadas pode ser afetada pela existência de potenciais conflitos de interesses.

O modo mais simples de afastar os riscos de uma situação de conflito de interesses é impedir seu aparecimento: o pai não apitará um jogo de que participe seu filho, o pesquisador não desenvolverá um projeto cujos resultados possam contrariar seus interesses pessoais, uma empresa ou instituição não financiará um projeto cujos resultados possam contrariar seus interesses econômicos ou institucionais. Ocorre, porém, que essa solução pode ser demasiadamente simples, sendo no mais das vezes inviável, e até mesmo indesejável.

De fato, a recusa em apitar o jogo pode implicar seu cancelamento, de modo que os jogadores podem preferir correr o risco de submeter-se a um juiz involuntariamente enviesado. Analogamente, o teste clínico de um medicamento pode não ser materialmente viável sem o apoio da empresa interessada em sua comercialização, o que poderia significar a privação do acesso a um valioso instrumento terapêutico. Além disso, parece razoável que uma boa parte dos custos do processo de elaboração de um produto comercial sejam assumidos pela empresa que lucrará com sua comercialização, e não, por exemplo, por órgãos ou agências alimentadas por recursos públicos.

Por essa razão, não nos resta senão lidar com potenciais conflitos de interesses por meio de estratégias mais complicadas, que muitas vezes só podem ser completamente definidas caso a caso. No entanto, dois princípios devem articular, em todos os casos, a formulação dessas estratégias: o princípio da plena informação e o princípio da plena verificabilidade. Não apenas a comunidade dos pesquisadores, mas toda a sociedade, deve ser informada sobre todas as circunstâncias de realização de um projeto que possa acarretar a existência de potenciais conflitos de interesse. Apenas assim poderá ser definido o grau de fidedignidade a priori dos resultados obtidos, que vai determinar em que medida tais resultados devem se submeter a tratamento crítico antes de serem incorporados como resultados cientificamente validados.

A revista Nature, por exemplo, passará a exigir que, dos artigos por ela publicados, constem todas as fontes de financiamento das pesquisas que neles resultaram. Para que esse tratamento crítico seja possível, todos os dados e procedimentos utilizados pelos pesquisadores na realização de seu projeto devem estar disponíveis para verificação de auditores independentes, por iniciativa seja de outros pesquisadores, seja de órgãos ou agências governamentais, seja de associações não governamentais. A aplicação desses princípios em casos particulares pode não ser uma coisa simples, mas é um desafio que o perfil e a motivação de boa parte da pesquisa científica e tecnológica contemporânea nos destina a enfrentar.

Luiz Henrique Lopes dos Santos é assessor científico da FAPESP e José Fernando Perez é o seu atual diretor científico.

Nota: Agradecemos aos Autores e a Editoria da Revista FAPESP-PESQUISA pela autorização da veiculação, na íntegra, deste artigo. (FAPESP-PESQUISA, março de 2001).

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