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Francis Crick : o homem que descobriu as hélices da vida.
"O Newton da Biologia". Assim o geneticista francês Raymond Devoret qualificava Francis Crick, nascido na Inglaterra e morto quarta-feira, 28 de julho, de um câncer, aos 88 anos, na Califórnia (USA). As sobrancelhas espessas e desalinhadas, evocando um ícone de Mefistófeles, os lábios estreitos e a risada tonitruante, Francis Crick é indissociável de James Watson, com quem dividiu o Prêmio Nobel, em 1962 (1), por ter descoberto a estrutura da molécula do DNA, o ácido desoxirribonucléico. Replicação. Em um breve artigo publicado nove anos antes na revista Nature, Watson e Crick tinham feito uma proposição teórica, segundo a qual a enorme molécula que se encontra no núcleo de todas as células, da bactéria ao homem, é constituída de duas hastes enroladas em uma dupla hélice capaz, por razões físico-químicas, de se replicar, salvo mutações. A proposição era simplesmente luminosa: permitia elucidar o velho debate sobre a identidade da molécula biológica portando os genes (proteína ou DNA?). Ficou claro que o DNA, dotado de uma estrutura única assegurando-lhe uma capacidade de replicação, era a "molécula da vida", aquela que transmite os caracteres hereditários de uma divisão celular a outra, de uma geração a outra, e isso desde o alvorecer da vida, há 3,5 bilhões de anos. Nessa descoberta, assinada em conjunto com Watson, Crick incontestavelmente teve o papel de catalisador de idéias, oferecendo seus conhecimentos em física e, sobretudo, sua inesgotável capacidade de construir teorias, em voz alta, no decorrer do dia, para maior alegria de Watson e irritação de seus colegas de laboratório. Quando, com Watson, construiu sua famosa maquete do DNA, era um "velho" estudante, com 35 anos. Tinha, em 1935, começado um primeiro doutorado em física, interrompido pela Segunda Guerra Mundial, durante a qual trabalhou no desenvolvimento de radares e de minas magnéticas. Em 1949, subitamente apaixonado pela estrutura de moléculas biológicas que se revela, então, por difratometria de raio-X, lança-se em um segundo doutorado no laboratório Cavendish, de Cambridge, a Meca do conhecimento científico nessa área. Ponto de partida. É aqui que entra em cena, vindo dos Estados Unidos, um estudante perdidamente apaixonado pela genética, James Watson, com uma obsessão: descobrir o suporte da hereditariedade. Dois anos mais tarde, o intrépido binômio publica o artigo mais célebre da história da biologia, fundador da genética moderna e da grande aventura, sempre em curso, da exploração da hereditariedade (2). Após essa descoberta, que leva alguns anos para ser admitida pela totalidade da comunidade científica, Crick torna-se professor da Universidade de Cambridge. Ancorado nas problemáticas colocadas pela biologia e pela bioquímica, segue, de modo fecundo, com suas reflexões teóricas, forjando a reputação de cientista que nunca fizera uma experiência. "Ele é o único biólogo molecular que eu conheço que conseguiu ganhar a vida fazendo teorias", dirá o geneticista Sydney Brenner, citado no ano passado pelo Time. Crick formulou, no início dos anos 60, a idéia do código genético presidindo a tradução do DNA em aminoácidos, esses elementos constituindo as proteínas, idéia que funda "o dogma central da biologia molecular".
Fascinado pelas origens da vida, mergulha em um domínio então balbuciante, a biologia do desenvolvimento, que busca como os organismos emergem com braço e cabeça de uma única célula, o ovo. E daí, pesquisando o embrião, ele descobre uma curiosidade irrepreensível para o órgão mais acabado, o cérebro. Em 1973, troca a Inglaterra pelos Estados Unidos, indo trabalhar no Salk Institute, de La Jola , na Califórnia. Com seu olhar racionalista, investiga os dados experimentais sobre a natureza da memória, a consciência e os sonhos, cuja função, postula ele, é fazer do passado de cada dia tábula rasa. A proposição gera polêmica. Nave espacial. Francis Crick, no início dos anos 80, aos 65 anos, escreve um livro, com Leslie Orgel, defendendo a idéia de que a vida chegou na Terra sobre as asas de uma nave espacial, enviada por uma civilização longínqua... Orgel, logo depois, qualificou como sendo uma "piada" essa teoria de "panspermia direta" (veja Nota do Editor, no final do texto), por oposição àquela, menos heterodoxa, que postula que a vida terrestre teria emergido da reunião de elementos vindos do espaço. Crick, ele mesmo, manteve que essa era uma hipótese séria. Espantoso? Menos que algumas de suas propostas sobre o uso do conhecimento em genética: "Nenhum recém nascido deveria ser reconhecido como humano, antes de ter passado por um certo número de testes relativos á sua dotação genética" (3). Espírito livre, Crick amava ser contra-corrente. James Watson, 76 anos, saudou a "inteligência" de seu antigo parceiro: "compartilhar seu escritório foi um privilégio extraordinário". Não mais existe o duo Watson-Crick. Resta registrar, no vocabulário da ciência, essa ligação molecular particular que os biólogos chamam "ligação Watson-Crick". Notas do Texto Original (1) Um prêmio compartilhado com o físico Maurice Wilkins, chefe do laboratório em que trabalhava a jovem Rosalind Franklin, cujos trabalhos foram utilizados por Watson e Crick. Ela ficou por longo tempo na sombra da saga do DNA, brilhantemente posta em publicidade por Watson. (2) História dessa descoberta no jornal Libération, de 23 de abril de 2003. (3) Citado por Hervé Ponchelet em "L'avenir n'est pás héréditaire", Edições Bélin. Nota do Managing Editor: (1) Panspermia, teoria segundo a qual a atmosfera, as águas, o solo, etc., estão impregnados de germens e esporos, cuja presença explica as fermentações, a putrefação e as doenças. Tal teoria foi retomada por S. Arrhenius, que acreditava que a vida teria vindo para a Terra de outros mundos, nos quais, logicamente, já existia. (2) Este texto, de autoria de Corinne Bensimom, foi publicado originalmente no jornal francês Libération (www.liberation.fr), de 31 de julho de 2004. As figuras apresentadas foram acrescidas ao texto original e são originárias do arquivo www.google.com.
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