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DIVULGAÇÃO
A gastronomia colocada a nu. 1. Introdução O que comemos? Geralmente, comemos produtos da agricultura e da criação locais, transformados por cozinheiros ou pela indústria em objetos admissíveis, aceitáveis, determinados por nossa cultura. Por exemplo, o natural de Toulouse (França) come "cassoulet" (uma espécie de feijoada com feijão branco), porque essa preparação faz parte de sua cultura; ele não comeria nem o feijão cru, nem um "cassoulet" no qual o pato e o porco fossem substituídos por serpente, nem um prato tendo os ingredientes do "cassoulet" clássico, mas cujo cozimento deixa-se de ser o tradicional. Ele suporta o "cassoulet" industrial, porque esse último é feito (ou parece ser) segundo as mesmas regras que na cozinha doméstica ou no restaurante. "Cassoulet"
Dividimos em duas essa questão das relações entre a ciência e a cozinha. Por um lado, a ciência pode contribuir com a técnica culinária tal qual a praticada quotidianamente nos lares? Por outro lado, a ciência pode contribuir para o avanço da arte culinária? Essa segunda questão é importante, porque, sem a arte, a técnica não vale nada: saber cozinhar um "cassoulet" efetuando-se as transformações físico-químicas razoáveis é insuficiente para que o mesmo seja bom. Inicialmente, será preciso utilizar o alho "rose", em lugar do alho comum; será necessário decidir sobre a variedade dos feijões, etc. Alho
As ciências são explorações do mundo que utilizam o método experimental: tendo identificado um fenômeno (o céu é azul), os cientistas pesquisam os mecanismos (por que o céu é azul?) por um método rigoroso que consiste em (1) análise do fenômeno; (2) elaboração de uma teoria (ou, mais modestamente, de um modelo); (3) estabelecimento de previsões deduzidas da teoria ou do modelo; (4) teste experimental das previsões que, espera-se, refutarão, antes que elas não confirmem as previsões; (5) modificações do modelo ou da teoria, a fim de melhor descrever os fenômenos; (6) e assim por diante. Na cozinha, por exemplo, fazemos um suflê: por que ele cresce? Inicialmente pode-se supor que as bolhas de ar, agregadas na preparação do suflê, pela clara de ovo batida em neve, crescem quando são aquecidas, porque os gases dilatam com o calor. Na base dessa hipótese ou modelo, utiliza-se uma lei chamada "lei dos gases perfeitos", para calcular o crescimento do suflê. Assim, supõe-se, por exemplo, que a pressão é constante e igual a uma atmosfera, depois se aplica, antes e após o cozimento, a relação PV = nRT, entre a pressão no suflê, V o volume, n o número de moles de gás no suflê, R a constante dos gases perfeitos e T a temperatura (em graus Kelvin). Supondo uma temperatura inicial de 20 ºC, antes do cozimento, e de 100 ºC no final do cozimento, (não se pode ultrapassar essa temperatura, para que não reste água líquida não evaporada), calcula-se que o suflê deva crescer 27 por cento. Se se corrige o cálculo a fim de levar em conta a ligeira sobrepressão no suflê, o crescimento teórico não é senão por volta de 20 por cento. Souflê
O segundo modelo deve, portanto, ser ainda aperfeiçoado e, assim, de aproximação em aproximação, continua-se a progredir na descrição melhorada do suflê. 2. E a arte, em tudo isso? No método experimental, não se vê lugar para a subjetividade. O científico é intercambiável. Ao contrário, na arte, é o artista que importa. Este tem objetivos pessoais, variáveis segundo as épocas, que vão da expressão de um sentimento pessoal à explicação poética do mundo, passando por todos os intermediários arrolados pelos teóricos da arte. Daí a conclusão aparente que a ciência e a arte não têm em comum senão o fato de serem atividades de cultura. Elas parecem avançar independentemente, a ciência ignorando a arte, como a arte ignora a ciência. Isso faz com que nos arrisquemos a concluir que nossa análise precedente é insuficiente. Ovos
Essa observação introduz a tecnologia, que se preocupa em analisar as técnicas, em aperfeiçoá-las, melhorar as ferramentas utilizadas pelos técnicos. Molho Aurora
4. A ciência na cozinha? Essa introdução provoca um impasse: nós admitimos, sem discussão, que a ciência possa se preocupar com o crescimento de suflês. Ora essa!, disciplinas reputadas tão sérias como a química e a física se preocupariam com coisas tão fúteis como as que comemos a cada dia? Suflê
A identificação da Gastronomia Molecular, como subdisciplina científica específica, se impõe em razão da evolução da ciência dos alimentos. Contudo, apesar do desenvolvimento da ciência dos alimentos, a cozinha restou quase que inexplorada do ponto de vista científico, ela era uma "arte química" privada de ciência. Ou, paradoxalmente, a cozinha é o lugar onde são coroados os esforços da ciência dos alimentos: para que produzir carnes tenras ou legumes gostosos, se o cozinheiro não sabe prepará-los à altura de suas qualidades iniciais?
A fim de colocar à disposição de cozinheiros, donas de casa ou empregados de restaurantes, informações e conhecimentos úteis à sua prática, tivemos o cuidado de distinguir uma disciplina que não se preocuparia senão com transformações culinárias: a Gastronomia Molecular, introduzida em 1990. É ela uma ciência de garantia, que se preocupa com a qualidade gastronômica das comidas? Evidentemente não: cada um tem interesse em tirar o melhor partido dos gêneros alimentícios que transforma culinariamente. A Gastronomia Molecular é, então, uma ciência fútil? Essa questão remete a uma eventual hierarquia das ciências, mas pode-se dizer que a química seja mais importante que a física, a biologia que a cosmologia? A ciência - é bom que se repita -, explora o mundo: a geologia explora o Globo, a biologia explora os seres vivos, a cosmologia explora o Universo e a gastronomia molecular explora o mundo das transformações culinárias. Estando claro o objeto da gastronomia molecular, examinemos agora sua estratégia de pesquisa. O corpus de dados a analisar é o conjunto dos fenômenos que podem ser observados nas cozinhas ou os que são descritos pelos livros de culinária. Assim, todas as receitas comportam, inicialmente, uma "definição": um suflê de queijo é a clara de ovo batida em neve, misturada a uma preparação pastosa, o conjunto é colocado em um refratário e levado ao forno; um "pot-au-feu" é obtido quando se aquece a carne na água. Após as definições vêm as "precisões": deve-se untar e enfarinhar a forma dos suflês, a carne deve ser colocada na água fria, para um bom "pot-au-feu". Observar que as "dicas", formas de manejo, práticas, conselhos transmitidos oralmente são as tais "precisões". De onde vem a idéia de distinguir dois objetivos de pesquisa? A primeira é uma modelização físico-química das definições: o que acontece quando um suflê assa, quando a carne é cozida na água? Em seguida, uma exploração das precisões: é verdade que o "pot-au-feu" é melhor quando a carne é inicialmente colocada em água fria? É verdade que as maioneses desandam quando há lua cheia? A modelização das receitas não é apenas um auxílio para o cozinheiro, mas também para aquele que aprende a cozinhar. Quem, face as 351 receitas de molhos dadas pelo cozinheiro Auguste Escoffier (1846-1935), em seu Guia Culinário, não experimentou uma sensação de impotência, tal como a do caminhante diante do Mont Blanc? Para bem preparar seus molhos, é preciso compreender a estrutura e identificar as relações entre os diferentes molhos: por exemplo, o molho "aïoli" é uma maionese, cuja gema de ovo é substituída pelo alho. Essa pesquisa dos pontos comuns e das diferenças facilita a aprendizagem. Observemos que os molhos mais simples são soluções, na água ou no óleo, cada molho contendo numerosas espécies de moléculas odorantes (elas estimulam os receptores olfativos) ou sápidas (estimulam os receptores das papilas gustativas). É o caso dos "fundos" e dos sucos, por exemplo. Para fazer um bom "aïoli"
Na cozinha, esse quadro é insuficiente, porque muitos molhos não estão presentes. Por exemplo, o molho "béarnaise" ("sauce béarnaise") se obtém pelo aquecimento de vinagre com chalotas picadas; depois, quando uma proporção considerável da água do vinagre evaporou, junta-se gema de ovo, que se aquece na manteiga. Esse molho evidentemente não é uma solução simples, uma vez que contém gotículas de matéria gordurosa dispersas na água, nem uma simples emulsão, porque ela contém também agregados de gema de ovo coagulada. É uma espécie de suspensão-emulsão. Cebolas, Chalotas (espécie de alho com sabor análogo ao da cebola).
O exemplo dos antigos grandes mestres é, ao mesmo tempo, uma fonte de ideal e de inspiração. Por exemplo, Lavoisier introduziu o formalismo da química, porque queria compendiar as terminologias: "Para apresentar aos olhos, sob um mesmo olhar, o resultado do que se passa nas dissoluções metálicas, construí espécies de fórmulas que, inicialmente, poderiam ser tomadas por fórmulas algébricas, mas que não derivam dos mesmos princípios; estamos ainda bem longe de poder trabalhar na química com uma precisão matemática, peço, em conseqüência, não considerar as formas que vou dar senão como simples anotações, cujo objetivo é aliviar as operações do espírito". Molho tipo "velouté", ao microscópio óptico. As estruturas esféricas são gotículas de matéria gordurosa, dispersas na fase aquosa, a qual contém também grãos de amido na forma de goma (a água introduzida nesses grãos os transformou em micro-géis). O diâmetro médio das gotas de matéria gordurosa é de 0,01 mm. (Fig.1).
Por exemplo, as emulsões são designadas pela fórmula H/E. É o caso da maionese, em que o óleo é juntado a uma gema de ovo, a qual contém por volta de 50% de água; a estabilização (temporária) do molho é assegurada pelas proteínas e fosfolipídeos da gema de ovo. Diferentes molhos
A exploração das "precisões", por si só, mereceria um artigo. Aqui, prefiro voltar à questão posta inicialmente: a química e a física podem contribuir para o avanço da arte culinária? "Coquille St. Jacques"
Os micro-reatores utilizados são sistemas que asseguram a dispersão ou as misturas de fases. Seu tamanho médio é de alguns centímetros (Fig. 3).
As realizações que acabamos de considerar são aplicações tecnológicas dos avanços da Gastronomia Molecular, a qual é, sempre, necessário repetir, a exploração científica do mundo da culinária. Falta espaço, aqui, para mostrar como o trabalho científico, ele mesmo, auxilia no aperfeiçoamento das técnicas clássicas e contribui, por isso, com a arte culinária. Ele facilita igualmente a transmissão dos conhecimentos da culinária, e deverá levar, espera-se, à renovação dos métodos culinários: no momento em que os povos dos países avançados se preocupam com o meio ambiente, o desenvolvimento sustentável. Pode-se conviver com o fato de que os milhões de franceses que cozinham desperdicem diariamente até 80% da energia que consomem para aquecer suas panelas? No momento em que a humanidade envia sondas a Marte, por que cozinhar com as mesmas panelas, garfos, peneiras que na Idade Média? Estes não têm razão de subsistir se não são apropriados às funções que lhes são atribuídas, mas como fazer musses, por exemplo? O garfo é menos eficaz que sistemas que injetarão bolhas pelo fundo do recipiente. Como fazer emulsões? Se os laboratórios de físico-química são equipados com cubas de ultrasom, para realizar as emulsões, é porque esses sistemas são mais eficientes que os garfos e os fuês das cozinhas. Já não é tempo, então, que esta "arte química" que é a cozinha enfim se beneficie dos avanços das ciências e das técnicas? A questão colocada então não é a de uma desumanização de uma atividade artística, mas, sim, em que, um pincel melhor, poderia gerar um melhor pintor? - Hervé This, Casseroles et Éprouvettes, Pour la Science, Paris, 2002. - Hervé This, Les Secrets de la Casserole, Editions Belin, Paris, 1993. - Hervé This, Révélations Gastronomiques, Editions Belin, Paris, 1995. - Hervé This, La casserole des Enfants, Editions Belin, Paris, 1997. - Hervé This, Traité Élémentaire de Cuisine, Editions Belin, Paris, 2002. - Philippe Coussot et Jean-Louis Grossiord (eds), Comprendre la Rhéologie, EDP - Bertrand Hervieu et Patrice Delannoy (eds), A Table !, Editions de l'Aube, 2003. - Antoine-Laurent de Lavoisier, Considérations Générales sur la Dissolution des Métaux dans les Acides, Mémoires de l'Académie des sciences, 1782, p. 492, repris dans les Ouvres, t. III. - Auguste Escoffier, Guide Culinaire, Flammarion, Paris. - H. D. Belitz et W. Grosch, Food Chemistry, Editions Springer, Berlin, 1987. - P. W. Atkins, Physical Chemistry, Editions W. H. Freeman and Company, New York. - Pierre-Gilles de Gennes, Françoise Brochard-Wyart, David Quéré, Gouttes, Bulles, Perles et Ondes, Editions Belin, Paris, 2002. - Hervé This, 2003, La Gastronomie Moléculaire, Science des Aliments, Vol. 23, N° 2, 187 - 198. Nota do Managing Editor: Este texto foi publicado primeiramente no site http://www.futura-sciences.com, consultado em fevereiro de 2005. |
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