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ENTREVISTAS
O Poder se Multiplica. Varda Burstyn é autora premiada, escritora política, crítica cultural e consultora de políticas públicas. Muitos têm descrito suas idéias e trabalho como "dez anos à frente da curva", e, realmente, suas idéias têm tido uma precisão preditiva notável. Esta é uma breve avaliação de sua obra. Maiores detalhes e bibliografia, veja aqui. Os interesses de Varda Burstyn, uma israelense residente no Canadá, vão da política do esporte ao poder da tecnologia e das megacorporações. Autora de três livros e inúmeros artigos, produziu vários programas sobre saúde, feminismo e políticas públicas para a CBC, a rede pública de rádio do Canadá. Foi vice-presidente do Greenpeace do Canadá e este ano lança seu primeiro livro de ficção, Water Inc., um thriller ecológico. Capa do Livro Water Incorporated, de autoria de Varda Burstyn.
CartaCapital - Que papel desempenha a periferia na sua visão do Admirável 1984? Varda Burstyn - Há dinâmicas similares à ficção de Orwell e Huxley com respeito aos países da América Latina, África, Ásia e outros. Em 1984, a idéia central é a da guerra como o coração pulsante da economia e das relações sociais. A situação do Iraque é uma clássica dinâmica orwelliana, assim como toda a história dos EUA nos últimos 50 anos vis-à-vis os estados árabes e o apoio a regimes deploráveis com o discurso de que lutamos pela democracia. Isso é verdade desde a experiência na Nicarágua e Guatemala até no Chile e na Argentina. A chamada guerra às drogas na Colômbia também é orwelliana, uma vez que a propaganda sugere que os EUA lutam contra as drogas, quando, na verdade, é uma tentativa de assegurar acesso a recursos naturais: petróleo, minérios e madeira. É o clássico doublethink, talvez a palavra mais importante cunhada por Orwell, que se refere a situações em que a versão oficial dos eventos é totalmente oposta ao que realmente acontece. CartaCapital - Como Bush se sai no uso dessa técnica? Varda Burstyn - Ele poderia dar cursos de pós-graduação em doublethink. Ele age assim internamente também; veja o Ato Patriótico e a erosão das liberdades civis. A idéia da guerra contra o terror foi criada em relação aos estados árabes, mas é usada como um veículo de propaganda para justificar mais terror na América Latina. Agora, falando sobre a dinâmica de Huxley: é o incentivo a colocar o consumo como o centro da vida e a perda da habilidade de valorizar outros tipos de vida. É o que os EUA fazem, assim como uma atitude em relação à natureza, à procriação, à modificação genética. Temos uma locomotiva orweliana baseada na militarização, que move uma agenda à Huxley, corporativa e consumista, que atinge o mundo todo. CartaCapital - A periferia é o que alimenta o império e também o inimigo necessário? Varda Burstyn - Sim, você não precisa ser marxista, socialista, ou mesmo ser de esquerda, para ver que os EUA entraram em uma fase clássica de construção do império. É o que Bush e sua gangue disseram que querem fazer! O império neocolonial era baseado no apoio a elites antidemocráticas, que faziam o trabalho militar sujo. Saímos dessa era para entrar em uma clássica construção do império, com invasão de territórios. Aqui a situação da periferia é muito ruim: ela é supridora de alimentos e campos de batalha. CartaCapital - A ascensão da China pode ser uma alternativa ao poder americano? Varda Burstyn - A China está se desenvolvendo rapidamente, mas ainda não está em condições de desafiar este novo ímpeto imperialista americano. Acho que os chineses estão cientes, não querem que esse plano seja levado a cabo, mas há uma profunda ambivalência dentro das elites chinesas sobre como agir. De um lado, há um renascimento do nacionalismo e a rejeição da idéia de que os americanos têm direitos sobre o globo. Mas o Partido Comunista e os novos milionários vêem nos EUA a chance de transformar a economia chinesa em direção ao capitalismo. Em 30 anos, será interessante observar as forças internas na China. CartaCapital - Uma catástrofe ambiental parece mais provável que o controle total dos indivíduos. Varda Burstyn - Concordo. A mídia fala como se pudéssemos sempre avançar e as pessoas tendem a projetar um futuro sempre melhor. Mas, com os sérios danos causados à biosfera e a pobreza crescente, temos o palco pronto para a catástrofe. Há livros sérios sobre esses assuntos, escritos por renomados cientistas, mas ainda não tiveram impacto real sobre o discurso da grande mídia. CartaCapital - Houve outras conquistas tecnológicas que inspiraram temores ao longo da história. O que há de novo sobre as tecnologias que estão nascendo neste momento? Varda Burstyn - As tecnologias têm diferentes capacidades de afetar o mundo. Tanto um rifle primitivo quanto uma bomba nuclear são armas e ambos existem em sociedades em que há elites, mas seu poder de causar carnificina é de ordem qualitativamente diferente. Sou uma daquelas pessoas que não acreditam que um rifle seja equivalente a uma bomba atômica. Acho que, se tivéssemos a chance de decidir de novo, deveríamos optar por não desenvolver a tecnologia nuclear. Mesmo que ela não seja usada como arma, suas conseqüências tóxicas e poluentes afetarão o planeta para sempre. A tecnologia transgênica, pela qual transferimos genes de uma espécie para outra, é inerentemente mais poderosa do que a técnica usada por Mendell ao explorar ervilhas em seu jardim. As tecnologias nuclear, genética e, agora, a nanotecnologia são intervenções na matéria viva com potencial para causar danos tremendos. Além disso, são usadas por enormes corporações transnacionais movidas a lucro. No conjunto, essas corporações são cegas, são psicopatológicas, só enxergam o lucro. Quando elas são dominantes, como é o caso agora, o uso das tecnologias não é feito de maneira cuidadosa, com aplicações limitadas e conseqüências controladas. Há milhares de hectares plantados com sementes geneticamente modificadas, mas nunca foi feito um estudo sobre a segurança dessas culturas através das gerações. Com os danos à biosfera e a pobreza, o palco está pronto para o colapso ambiental. CartaCapital - Pelo menos se debate tais tecnologias. Varda Burstyn - Grande parte do problema é de comunicação, ideologia e mídia. É difícil para as pessoas entender conceitos importantes desenvolvidos em setores especializados, a não ser que a mídia explore e use esses conceitos. Por exemplo, você precisa compreender o conceito de ecologia, que se refere a um sistema interdependente, no qual cada parte ajuda a outra a continuar existindo. O problema não é que todas as árvores da Amazônia vão desaparecer, mas que talvez desapareça somente um número suficiente de árvores para tornar o sistema incapaz de se renovar. Não é preciso destruir todas as partes, apenas o suficiente para que o todo colapse. Não é um conceito difícil, mas é ofensivo a um sistema de exploração que diz: "Continuaremos a tirar qualquer coisa de qualquer lugar porque essa é a única maneira de atingir um padrão de vida melhor". Não é verdade, há tecnologias fabulosas que se aplicam a várias áreas, e são verdes: podemos esquentar nossas casas com energia solar, cultivar sem químicos, depender menos de combustíveis fósseis. CartaCapital - Qual o estado e as perspectivas da resistência ao império corporativo? Varda Burstyn - Hoje, no Norte, temos mais pessoas organizadas que nunca. Elas se agrupam em "organizações oposicionistas", organizações não-governamentais, de justiça social, etc. Eu tenho 56 anos e, quando comecei meu ativismo político aos 16, não tínhamos essas organizações. O movimento sindical era forte e é muito ruim que o tenhamos perdido. Se houver como fazer com que essas vozes sejam ouvidas pelo mainstream, talvez haja alguma solução. CartaCapital - A senhora apresenta várias distopias em seu artigo. Qual é a sua utopia? Varda Burstyn - Gostaria de ver o desenvolvimento de uma compreensão político-ambiental e de justiça social que permitisse recuperar nossos governos, recriá-los para ser guardiães da humanidade e do sistema em que vivemos, e reorganizá-los com base no que os ambientalistas chamam de bio-regiões. Estas são regiões em que a estrutura política corresponde à estrutura geográfica em vez de servir às classes dirigentes. Para chegar lá, eu esperaria que professores, educadores e autoridades de saúde se juntassem aos ambientalistas para promover um programa que não seja baseado em dizer "não", mas em dizer "sim". Há exemplos práticos que podem ser colocados em prática para mudar o sistema sem perder nada, apenas ganhando. Nota do Managing Editor: Flávio Lobo é autor dessa matéria, publicada na revista CartaCapital, Ano XI, Número 325, de 19 de janeiro de 2005, Seção Destaque. As figuras aqui exibidas não fazem parte do texto original, tendo sido obtidas em www.google.com. Quanto às duas figuras apresentadas na matéria veiculada pela revista, as mesmas foram aqui omitidas. |
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