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ENTREVISTAS

Setor químico está pronto para um novo salto e para atingir a plena competitividade internacional.





Fernando Galembeck é paulistano, com 61 anos. Formou-se Bacharel e Licenciado em Química na USP, onde obteve o Doutorado em 1970. Lecionou na USP e na Unesp, sendo docente da Unicamp desde 1980 e tendo exercido funções de Diretor do Instituto de Química e de Vice-Reitor da mesma universidade. Tem produção científica intensa e marcada pela originalidade, empenha-se nas atividades de ensino e de difusão científica e tem participado ou coordenado vários projetos de P&D com empresas industriais, dos quais já resultaram produtos de alta tecnologia, além de várias patentes. Coordenou a parte de Química e Engenharia Química do PADCT, programa responsável pela grande mudança qualitativa e quantitativa desta área nos últimos vinte anos. Exerceu numerosas funções em sociedades científicas (atualmente, preside a Sociedade Brasileira de Microscopia e Microanálise e é Diretor da Academia Brasileira de Ciências) e em órgãos de fomento e gestão de C&T.


LQES NEWS - Professor Galembeck, nos últimos dias de 2003 e nos primeiros de 2004, foi publicado no Diário Oficial da União o texto que regulamenta a Lei de Incentivo à Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento de produtos e, no jornal O Estado de São Paulo, um artigo assinado pelo Ministro Palloci tratando também de Ciência e Tecnologia: como vê o senhor estas duas manifestações?

Galembeck - A Lei e o artigo do Ministro são muito importantes e podemos ainda acrescentar a anunciada proposta de criação de uma "Embrapa Industrial", estampada nos jornais do dia 16 de janeiro. Desta última, ainda não conheço os objetivos específicos ou estratégias, mas a mesma demonstra uma preocupação saudável. Concluo que o governo federal está de mangas arregaçadas, querendo criar um ambiente propício à ciência, tecnologia e inovação. Estes movimentos do governo federal transcendem o espaço do MCT, o que significa que há um forte comprometimento, disseminado em todo o primeiro escalão do governo federal, com a questão de C&T&I. Acredito que este novo movimento venha a superar, em importância, o notável momento da criação dos Fundos Setoriais.

LQES NEWS - Há, no artigo do Ministro Palloci, duas menções específicas à microeletrônica e à nanotecnologia. Para alguns, estes dois pontos parecem, para usar um termo da Química, "imiscíveis". Na sua opinião, isso tem alguma base ou tratam-se daqueles falsos dilemas que, de tempos em tempos, aparecem em nossa comunidade?

Galembeck - Realmente, algumas pessoas criticaram o documento do Programa Nacional de Nanotecnologia, elaborado em 2003 no âmbito do MCT, devido à importância dada às tecnologias de silício, ou seja, às tecnologias desenvolvidas pela microeletrônica e que hoje são aproveitadas na construção de micro e nanodispositivos. Só consigo entender tais críticas considerando que essas pessoas não estão informadas sobre a importância das tecnologias de silício para a nanotecnologia. Um exemplo marcante dessa importância é o projeto "Millipede", da IBM. Por outro lado, o ministro Palloci parece estar muito bem informado sobre a enorme necessidade que o Brasil tem de se recuperar do atraso em microeletrônica - que, aliás, hoje já deve ser chamada de nanoeletrônica - para poder fazer nanotecnologia.

LQES NEWS - No discurso das Agências de Fomento tem ficado cada vez mais clara a necessidade de um melhor relacionamento com o setor produtivo industrial. Publicações importantes como o Livro Branco e o Livro Verde da C&T chegam, salvo melhor juízo, a dar a impressão de que existe muito pouca pesquisa científica no ambiente industrial: como o senhor vê essa situação?

Galembeck - Existe muita pesquisa, desenvolvimento e inovação no setor industrial brasileiro, mas ainda há espaço e necessidade de muito mais. Temos tido enormes sucessos, que são percebidos pela população, mas não por alguns "formadores de opinião". Por exemplo, o Brasil é o único país no mundo que conseguiu sucesso em um item prioritário da agenda de C&T&I de todos os países do mundo, que é a produção de energia em forma facilmente transportável, a partir de matérias-primas renováveis. Essa maravilhosa realidade está presente nas ruas de todo o Brasil. Não se consegue um sucesso como este sem uma grande quantidade de pesquisa e de produção em empresas, nas cidades e no campo. Quem acha que no Brasil não há P&D&I em indústria deveria procurar conhecer os laboratórios bem equipados e bem tripulados que encontramos em muitas empresas brasileiras e os bons resultados obtidos por essas empresas. Principalmente, deveria conhecer a realidade do setor industrial nas áreas que foram objeto do PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que vem sendo executado desde 1984). Nestas áreas, encontramos empresas nacionais competitivas internacionalmente e hoje capazes de desenvolver e aplicar tecnologias próprias. Isto não existia quando o PADCT teve início, aliás, ele foi concebido exatamente para podermos chegar à situação presente. É preciso disseminar estes resultados para todos os outros setores industriais. Um dos argumentos usados pelos que afirmam a falta de pesquisa na indústria é o pequeno número de doutores empregado em empresas; infelizmente, este argumento usa um simples número, sem analisá-lo, ignorando todos os pesquisadores muito bem sucedidos, que estão trabalhando em empresas, ainda que não sejam portadores do título de doutor. É muito importante intensificar a atividade de pesquisa em empresas, mas isso deverá ser feito considerando os casos brasileiros de sucesso em inovação. A indústria brasileira sobreviveu à abertura descontrolada do mercado interno, está contribuindo fortemente para a balança de pagamentos e não seria capaz de fazer isso se não fosse capaz de criar tecnologias e de inovar. Temos alguns problemas grandes, mas felizmente localizados em alguns setores: microeletrônica, fármacos, especialidades químicas e alguns setores de alta tecnologia. Com uma política industrial competente e atraente para as empresas e as instituições de pesquisa, como a que está sendo anunciada, vamos superar estas limitações.

LQES NEWS - Segundo a ABIQUIM (Associação Brasileira das Indústrias Químicas), o setor químico, em 2003, fechou a conta em mais de 40 bilhões de dólares, não obstante um déficit de comércio exterior de mais ou menos 8 bilhões no setor. Como o senhor analisa tais números? São bons? Poderiam ser melhores?

Galembeck - O setor químico brasileiro é hoje o segundo maior setor da indústria de transformação brasileira e só perde para a indústria de alimentos. Entretanto, ainda temos um déficit de comércio exterior nesse setor, enquanto todos os países desenvolvidos têm saldo, inclusive os Estados Unidos. Isso é notável: os Estados Unidos têm um enorme déficit de comércio exterior global e têm grandes déficits setoriais, mas preocupam-se em ter saldo no setor químico porque este é um setor estratégico. Portanto, deve ser meta nossa eliminarmos nosso déficit do setor químico, fortalecendo os sub-setores que são os seus maiores causadores: medicamentos, fármacos e especialidades químicas. Temos hoje no país uma capacitação científica, tecnológica e empresarial que está sendo mobilizada para a inovação geradora de produtos químicos de alto valor agregado e já tem obtido alguns sucessos importantes. Por exemplo, um importante alicerce do programa brasileiro de combate à AIDS é a produção nacional de antivirais. Com políticas de desenvolvimento industrial e de fomento científico e tecnológico bem concebidas e bem implementadas, o setor químico brasileiro vai se tornar ainda mais vigoroso. Este setor deu grandes saltos em vários momentos históricos, respondeu espetacularmente ao PADCT e está pronto para, em um novo salto, atingir a plena competitividade internacional.

LQES NEWS - Conectando com a pergunta anterior, a Lei de Inovação (que ainda tramita no Congresso Nacional) poderá ter algum impacto sobre tais números, ou a questão é mais de caráter eminentemente econômico e estrutural, ou seja, aumento de investimento e de escala?

Galembeck - A Lei de Inovação é um elemento essencial de uma boa estratégia de mudança da situação atual, porque será necessário mobilizar muitas pessoas, com vários níveis de capacitação para a pesquisa e desenvolvimento, e hoje uma parte significativa destas pessoas se acha nas universidades públicas. Do lado das empresas, será também necessário mobilizar, incentivar e fomentar algumas centenas de empresas, na maioria de porte médio ou pequeno e dispersas por vários pólos no país. Algumas destas têm equipes muito bem qualificadas, mas outras precisam melhorar bastante. É preciso amplificar e replicar os bons exemplos de interação entre os estrategistas e pesquisadores das empresas e os pesquisadores universitários. Com isso, teremos muitas equipes numerosas e capazes de criar conhecimento novo e gerador de riquezas.

LQES NEWS - Permita-me mudar um pouco o rumo de nossa conversa para a questão da formação de recursos humanos. Como o senhor vê a formação do químico de hoje, considerando que estão vindo por aí importantes mudanças paradigmáticas, mudanças estas que podem implicar até em potenciais rupturas tecnológicas.

Galembeck - A formação do químico, como a de qualquer profissional, é cada vez mais complexa. O essencial é termos clareza sobre as capacidades e habilidades que devem ser construídas, os conhecimentos que devem ser dominados e atualizarmos constantemente as aulas, práticas de laboratório e outras atividades dos alunos, para que os diplomados possam ser competitivos e capazes de atender às múltiplas exigências atuais. Por exemplo, muitos dos fundamentos científicos da Nanotecnologia são tópicos de Química que os estudantes devem dominar profundamente. A Biologia é hoje importantíssima na formação e na prática do químico, assim como o são a capacidade de comunicação, de planejamento e de análise. É preciso, ainda, diminuir as barreiras entre os laboratórios e as plantas piloto e de produção. Os cursos têm de responder a estas novas necessidades, imediatamente.




LQES NEWS - O caráter de ciência central atribuído à Química a coloca em todos os campos da atividade humana, criando uma situação de "quase" onipresença. O senhor acredita que, em decorrência disso, muita coisa - tipicamente do substrato conceitual da Química -, acaba tendo seus méritos altamente valorizados e reconhecidos em outras áreas? Talvez isto já não esteja ocorrendo com a Nanotecnologia?

Galembeck - Os fenômenos químicos estão em toda parte e é impossível a um ser humano compreender seu mundo sem ter alguma clareza sobre estes fenômenos. Por isso mesmo, muitas pessoas fazem (ou tentam fazer) Química até mesmo sem o perceberem e os resultados são, obviamente, medíocres. A Nanotecnologia é um caso interessante: há hoje pessoas muito impressionadas com a possibilidade de transformação do lixo em alimento, movimentando moléculas e átomos. Entretanto, isto é o que a Natureza já faz há milhões de anos e os homens fazem racional e eficientemente há uns poucos séculos, usando reações químicas. Os que querem transformar lixo em alimento, movimentando átomo por átomo, deveriam antes aprender quanto vale o número de Avogadro. Depois disso, irão certamente juntar-se aos que hoje fazem isto usando e ajudando a aperfeiçoar ou revolucionar métodos químicos e biotecnológicos poderosos, capazes de processar milhares de toneladas por dia.

LQES NEWS - O senhor vem de participar de uma importante reunião, organizada pela Academia Brasileira de Ciências, que tratou da ética em ciência. Quais foram as principais linhas de discussão tratadas? Dada a dimensão que a ciência brasileira atingiu, não seria o caso de começarmos a aprofundar essa discussão em nossa comunidade, inclusive para poder trabalhar casos inevitáveis ligados a essa questão?

Galembeck - A reunião foi muito movimentada e teve momentos de discussão muito acalorada. Foram discutidas várias questões, desde a qualidade e uso da informação científica até os problemas associados ao impacto global das novas descobertas. A ciência sempre teve interfaces tensas com o poder e com a riqueza das nações e indivíduos (lembremo-nos dos hititas, de Galileu, Oppenheimer e Monteiro Lobato). Hoje, a informação científica movimenta as bolsas de valores (p.ex., Nasdaq) e há imensos conflitos de interesses afetando o fluxo de informação. É preciso termos uma consciência bem informada sobre o impacto da ciência sobre a indústria, o comércio, o poder militar e policial. Por exemplo, o julgamento por pares, amplamente usado para se avaliar projetos e distribuir recursos, é certamente prejudicado se há concorrência econômica e disputas de poder entre os pares. Revistas prestigiosas têm publicado trabalhos com erros graves e isto pode ser atribuído à prevalência de fatores não-científicos nas decisões. Há uns poucos anos, o mundo científico e as bolsas de valores estavam deslumbrados com as perspectivas da Genômica. Ações foram lançadas em bolsas a 10 ou 12 dólares, subiram a 140 em poucos meses e, um ano depois, estavam abaixo do preço de lançamento. O que foi isto? Um imenso engano coletivo ou apenas uma operação especulativa visando grandes lucros? Este exemplo mostra claramente como os aspectos científicos e comerciais estão em muitos casos profundamente imbricados, criando importantes questões éticas. Desde Prometeu e Pandora, o conhecimento é uma fonte de riscos. Nos últimos anos, os riscos têm sido mais numerosos e talvez maiores do que anteriormente. Por outro lado, temos muito mais elementos para tomarmos decisões e precisamos de muita iluminação e de sabedoria para adotarmos critérios de decisão.

LQES NEWS - Sob sua coordenação foi realizado em Foz de Iguaçu, aliás com grande sucesso, um congresso internacional que trouxe ao Brasil eminentes professores e pesquisadores de vários países do mundo na área de colóides e materiais. O senhor poderia comentar um pouco o que foi esta experiência e que significado teve para o Brasil e para a ciência brasileira a realização de evento de tamanha envergadura.

Galembeck - A 11th International Conference on Surface and Colloid Science foi um sucesso científico, de público e de organização. A sua realização coloca o Brasil entre os países importantes nesta área, reconhecido pela entidade internacional responsável (International Association of Colloid and Interface Science) e pelas centenas de pesquisadores estrangeiros que vieram participar. Fazer um congresso desse porte no Brasil, com todas as nossas incertezas, foi uma operação de risco para o prestígio da ciência brasileira, mas o resultado foi excelente.

LQES NEWS - Voltemos um pouco à questão da pesquisa, agora para aquela do dia-a-dia do laboratório. Há algum tempo, o senhor vem trabalhando com os chamados nanocompósitos e suas associações com polímeros. Eventualmente, para quais problemas tais materiais avançados poderiam ensejar soluções? As empresas já começam a avaliar o potencial dos mesmos?

Galembeck - Há várias empresas explorando as possibilidades desses materiais, inclusive no Brasil. Estão surgindo muitos novos produtos: embalagens, pneus de automóveis recicláveis, adesivos especiais, materiais para uso médico, materiais com excelentes propriedades mecânicas e térmicas para as indústrias de transportes, aviões e construção civil, muito mais acessíveis que materiais atuais. Há uma grande corrida em todo o mundo, com milhares de pesquisadores em muitas centenas de laboratórios, explorando as novas possibilidades. O único limite para os nanocompósitos, atualmente, é a nossa capacidade de imaginação. Ganhará quem tiver imaginação, agilidade e competência.

LQES NEWS - Finalizando, Professor Galembeck, que conselhos o senhor daria a um estudante que esteja pensando em fazer pós-graduação em Química e que tenha dúvidas sobre se vale ou não a pena entrar na área de materiais?

Galembeck - A Química é e continuará sendo a área que trata, por definição, das transformações da matéria. A Química continua mostrando uma grande vitalidade e as descobertas importantes vão se sucedendo rapidamente. Portanto, é uma área ascendente, de futuro. Quanto aos materiais, é bom lembrar que a Química tratava, no início do século 20, dos corantes, fertilizantes, explosivos, soda e sabão, papel, vidro, metais. Durante o século 20, a petroquímica adquiriu uma enorme importância produzindo os plásticos e borrachas. Estes são e serão usados, cada vez mais. Por outro lado, hoje temos uma presença crescente de novos materiais em baterias, computadores, equipamentos de tecnologia de informação, automóveis e aviões. Estamos entrando na era dos materiais inteligentes, capazes de exercer funções muito sofisticadas. Por isso, estou certo de que há um brilhante futuro para jovens de talento e de visão, na Química de Materiais.

LQES NEWS - Obrigado pela entrevista e muito sucesso em seu trabalho.


Nota do Managing Editor: Entrevista feita por Oswaldo Luiz Alves, Coordenador Científico do LQES Website e do LQES NEWS.

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