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CULTURA DA QUÍMICA

O vidro explica

Não há explicações fáceis para certos fatos históricos. Por que foi na Europa, e não no resto do planeta, que houve uma revolução cultural, outra científica, acompanhada por uma militar e seguida de mais outra, industrial? Tudo no período de 1200 a 1850, uma mera fração da história humana.

Existem causas próximas, existem causas mais remotas. Há fatores econômicos, há os culturais - e existe o óbvio debate sobre a sua importância relativa.

Existem invenções seminais. A roda é uma óbvia delas. A pólvora é outra. Mas dois autores argumentam que, por trás do sucesso dos europeus, está um elemento prosaico da vida moderna, um "herói" cujas glórias ninguém fez muita questão de cantar: o vidro.

E há também a tecnologia, e as técnicas que permitem a obtenção de mais conhecimento -que se transforma em poder, metamorfoseado em navios mais capazes, em armas mais letais, em remédios mais eficientes, que facilitaram a expansão européia.

A revolução cultural foi o Renascimento, e sua redescoberta do humanismo greco-romano. A revolução militar ainda tem suas datas de início e fim debatidas, mas significou o "modo europeu de guerrear", que conquistou o resto do mundo depois que Vasco da Gama chegou na Índia e Cristóvão Colombo na América no final do século 15.

A revolução científica transformou a visão humana do mundo, de mística-autoritária para cética-discutível. E o conhecimento gerado serviu para criar novas ferramentas que deixavam de depender de músculos -animais ou humanos-, para usarem energia físico-química, como os motores a vapor e de combustão interna.

O vidro deu a base para ocorrerem essas revoluções. E graças a elas, os europeus -e suas colônias ultramarinas povoadas principalmente por europeus, como os Estados Unidos- passaram a ser hegemônicos no mundo.

Essa é a tese de Alan Macfarlane, antropólogo da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e de seu colega Gerry Martin, um industrialista e colecionador de instrumentos científicos, recentemente morto. Os dois defenderam a tese em um livro publicado em 2002, "The Glass Bathyscaphe" ("O Batiscafo de Vidro", ainda sem tradução para o português), e, mais recentemente, em um artigo na revista científica norte-americana "Science" (www.sciencemag.org), publicado na última sexta-feira. Uma versão preliminar do livro, assim como diversos vídeos ligados ao vidro podem ser vistos na página do antropólogo, na Internet no endereço www.alanmacfarlane.com.


Choque de civilizações

A resposta a essa pergunta acadêmica feita no primeiro parágrafo tem importância prática e política nos dias de hoje. Pois essa civilização ocidental, ao mesmo tempo judaico-cristã e secular, está sob ataque de obscurantismos, vindos tanto de fora, como de dentro. Se, por um lado, tornou-se praxe descrever os radicais islâmicos como "fundamentalistas", convém lembrar que o termo surgiu para descrever radicais religiosos cristãos. O presidente dos EUA, George W. Bush, e seu inimigo número um, Osama bin Laden, podem até não ser aliados de ocasião, como o documentário "Farenheit 9-11", do americano Michael Moore, indicaria; mas ambos os homens têm visões de mundo parecidas.

"Vidro e o Confronto de Civilizações" é o curioso título de um dos capítulos do livro da dupla, no qual eles comentam como as técnicas européias de produção de vidro não chegaram a ser assimiladas no Oriente. Falam os autores: "Primeiro, há a pergunta do que exatamente nós queremos dizer com "revolução científica" e "Renascimento". A "revolução científica" deve, de fato, ser dividida em duas partes. A primeira ocorreu aproximadamente entre 1250 e 1400 e consistiu em diversos fatores, incluindo a absorção do conhecimento grego por meio dos autores árabes, pelo desenvolvimento das universidades, pela melhoria de ferramentas lógicas, por um interesse crescente pela precisão e pela exatidão, por uma sofisticação crescente da química, matemática, física e em particular da óptica, uma ênfase crescente na autoridade da evidência visual observada do que na autoridade dos antigos como escrito nos textos".

Essa "primeira revolução científica" criou as bases para o que veio depois -como o método experimental e o ceticismo. Depois, a partir da década de 1590, com os trabalhos de Francis Bacon e Galileu Galilei, e no século seguinte com Robert Hooke, Robert Boyle e Isaac Newton.


Ferramentas

A segunda leva criou a ciência praticamente como ela é hoje, com ênfase em instrumentos científicos para a obtenção de conhecimento. E sem a existência do vidro, não haveria boa parte dos instrumentos que produziram a revolução.Macfarlane e Martin selecionaram 20 experimentos científicos famosos, ao acaso, que tiveram grande impacto na sociedade. E descobriram que 15 deles seriam impossíveis caso o vidro não existisse.

Por exemplo, o vidro permitiu a invenção do microscópio e do telescópio, com isso criando as bases de disciplinas fundamentais como a microbiologia e a astronomia. E, sem vidro transparente, como seria possível ler barômetros, termômetros e mesmo cronômetros?

Os autores argumentam que sem barômetros seria mais complicado estudar o comportamento dos gases. E, sem vidro, não existiriam nem motores, nem eletricidade. Nem lâmpadas, obviamente.

Vários povos na Antigüidade desenvolveram o vidro. Para muitos, ele não passava de um substituto barato de pedras preciosas. Os romanos foram além, criando um bom número de aplicações para o vidro, no que foram seguidos pelos venezianos na Idade Média. Nenhuma das outras grandes civilizações desenvolveu o vidro como os europeus fizeram então. "Que a revolução do conhecimento dos últimos 500 anos tenha acontecido na Europa Ocidental e não em outro lugar pode ser atribuído em parte ao colapso da manufatura de vidro em civilizações islâmicas e sua importância diminuída na Índia, no Japão e na China", dizem Macfarlane e Martin.

Não são os cientistas que fazem diretamente seus instrumentos. Eles dependem de uma indústria local, para a qual fazem suas encomendas. Mesmo que o pesquisador saiba do que precisa -um tubo fino e longo e transparente para encher de mercúrio ou água-, ele só vai conseguir o instrumento se existirem os artesãos capazes de fazê-lo. Era o que seria necessário para os experimentos do italiano Evangelista Torricelli sobre vácuo. Mas só na Europa era possível ter isso -nunca, então, na China, Índia, Japão, África ou mesmo nas colônias européias nas Américas.

As conclusões da dupla são ousadas: "O vidro transformou a relação total do homem com o mundo natural, e consigo próprio. Mudou o sentido da realidade, privilegiando a visão sobre a memória, sugeriu conceitos novos de prova e de evidência, conceitos humanos alterados do ser e da identidade. O choque da visão nova desestabilizou a sabedoria convencional, e a visão mais precisa e mais exata forneceram as fundações para o domínio europeu sobre o mundo inteiro durante os séculos seguintes".


Nota do Managing Editor: Este artigo, assinado por Ricardo Bonalume Neto, foi veiculado primeiramente na Folha de São Paulo, de 05 de setembro de 2004, no Caderno Mais.


Veja mais:

Vidros

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