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NOVIDADES
É prática comum de empresas farmacêuticas recrutar pesquisadores, supostamente imparciais, para assinar estudos que estes não realizaram, com o objetivo de ocultar interesses por trás dessas publicações. Agora, alguém resolveu denunciar um caso e abrir a questão ao debate público. Adriane Fugh-Berman é médica e pesquisadora na Universidade Georgetown, em Washington, nos EUA. Em meados do ano passado, ela foi contatada por uma empresa de comunicação médica vinculada a uma companhia farmacêutica, com uma proposta. A dita companhia propôs que ela assinasse um artigo de revisão (tipo de estudo mais importante nas ciências médicas, pois reúne resultados de diversas pesquisas paralelas e faz um balanço de tudo que foi investigado sobre o tema). O assunto era a interação de ervas com warfarin, um famoso anticoagulante com uma longa história nos EUA, único de uso oral aprovado pela FDA (agência que regula fármacos no país). A proposta, feita por e-mail, dizia explicitamente que o estudo havia sido financiado por uma certa companhia farmacêutica, que não tinha nenhuma droga no mercado concorrente do warfarin, nem nenhum produto derivado de ervas. Intrigada, Fugh-Berman pediu mais informações. Poucos meses depois, em 24 de agosto, ela voltou a ser contatada. A empresa de comunicação havia enviado um rascunho do estudo, já assinado por ela, para que ela fizesse as modificações que achasse necessárias, de preferência até o dia 1º de setembro. Sobre o interesse da farmacêutica pelo estudo, a empresa de comunicação disse a Fugh-Berman: "Embora não haja promoção de nenhuma droga nesse estudo, a companhia quer preparar o palco para novos anticoagulantes que não estão sujeitos às inúmeras limitações do warfarin". A pesquisadora da Georgetown não aceitou ceder seu nome para a publicação da pesquisa. E a história teria provavelmente morrido aí, não fosse uma coincidência. Outro cientista mais permissivo foi encontrado pela empresa para assinar o estudo. O trabalho, então, foi submetido para publicação no "Journal of General Internal Medicine", revista científica americana com "peer-review", sistema em que outros cientistas, independentes, são chamados a avaliar o conteúdo dos trabalhos antes da publicação. "Por coincidência, eu fui chamada a avaliar esse artigo, uma versão revisada, mas reconhecível, do manuscrito que antes havia sido enviado a mim", escreve Fugh-Berman, num artigo que saiu ontem nessa mesma revista. "Ao saber de suas estranhas origens, os editores do "Journal" rejeitaram o trabalho e incentivaram uma discussão internacional sobre "ghostwriting" por empresas de comunicação entre os membros da Associação Mundial de Editores Médicos, alertando-os para o fato de que estudos submetidos podem não reconhecer apropriadamente financiamento de corporações e/ou co-autoria." No artigo publicado, os editores do "Journal of General Internal Medicine" alteraram o manuscrito de Fugh-Berman, com autorização dela, para omitir os nomes das companhias envolvidas no caso, supostamente porque seu objetivo não era fazer uma denúncia mas sim abrir um debate. Em entrevista à Folha, a pesquisadora de Georgetown revelou os nomes. A empresa de comunicação médica era a Mx Communications, e a companhia farmacêutica era a AstraZeneca. Ambas têm sede no Reino Unido. Fugh-Berman considera o problema sério. Ao encerrar seu artigo, diz: "Duvido que eu seja convidada novamente para ser uma autora de mentirinha, mas certamente há outros médicos que estariam dispostos a propagandear essas enganações". No fim, o novo anticoagulante da AstraZeneca ganhou aprovação para alguns casos na França, mas foi vetado para uso nos EUA. Embora tenha ocultado os protagonistas do caso, o "Journal of General Internal Medicine" entrou de sola na questão. Afinal de contas, a estratégia usada pelas farmacêuticas solapa a confiabilidade que se pode ter em resultados, mesmo quando publicados por revistas com "peer-review". Usando um pesquisador "imparcial e independente" como autor, as empresas evitam a obrigatoriedade imposta por muitas publicações científicas de declarar interesses financeiros ligados à pesquisa. Periódicos que se consideram sérios não podem gostar disso. O "Journal of General Internal Medicine" não gostou. "Nesta edição, Fugh-Berman descreve um caso grosseiro de comportamento antiético por um autor, um fabricante farmacêutico e uma companhia de educação médica", afirma o editorial da revista. Em resposta ao caso, o "JGIM" decidiu enrijecer sua política editorial, especificando que qualquer pessoa ou companhia que teve influência no texto ou no conteúdo de um artigo deve ser identificada. E a Associação Mundial de Editores Médicos ampliou seu foco para cobrar não só a responsabilidade dos autores, mas as dos que encomendam esses artigos e as empresas que os redigem e arregimentam os "ghostwriters". Nota do Managing Editor: Este texto foi publicado no Jornal do Meio Ambiente, de 19 de abril de 2005. |
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